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Líquido incerto
Se o homem existe, é porque existe a água. Não só graças ao caldo proteico que nos deu a vida bilhões de anos atrás, como também, e sobretudo, pelo que fizemos dos rios e lagos que a natureza nos dispôs. Não é por acaso que o primeiro grande salto de civilização da espécie humana tenha se dado justamente num lugar conhecido como Mesopotâmia – “entre dois rios”. E, depois dele, às margens do Nilo, do Indo, do Amarelo, do Danúbio, do Amazonas e dos outros tantos cursos d´água que aprendemos a explorar com o fim único de saciar nossa sede civilizatória. Tanta foi a sede, porém, que chegamos ao século 21 constatando o que parecia improvável: o lento, e talvez irreversível, declínio do nosso mais valioso recurso natural. Sim, as fontes já começam a secar. E tudo indica que, daqui em diante, é a existência da água que dependerá do homem. Não que vá acabar – o ciclo hidrológico planetário garante que as águas permaneçam em eterna reposição, desde que os seres vivos transpirem e os mares evaporem. Mas pode, isso sim, sumir de nossas vistas. Basta saber que, do total de água existente no planeta (em torno de 1,4 bilhão de quilômetros cúbicos), 97,5% estão nos oceanos, portanto praticamente imprestáveis ao uso humano. A água que nos permite a vida, se restringe a 2,5% do volume global, sendo que três quartos disso estão congelados, na forma de geleiras e calotas polares. O que há de água doce ao nosso alcance, então, não passa de miseráveis 0,5% – grande parte, porém, armazenada embaixo da terra, em aquíferos e lençóis freáticos, nem sempre de fácil acesso. As chamadas águas superficiais – rios, lagos e solos encharcados pela chuva – correspondem a apenas 0,015% do total mundial. Em outras palavras: se toda a água do planeta coubesse num galão de 20 litros, a parte que nos serve mal encheria um copo americano. E apenas uma gota conteria todos os nossos rios e lagos. A grande questão é que estamos bebendo desse copo – ou sujando seu conteúdo – mais rápido do que a natureza consegue repor. E, a julgar pelo ritmo de crescimento da demanda mundial, é certo que o quadro deve se agravar nas próximas décadas. Atente-se aos números: em 1900, o mundo consumiu 580 quilômetros cúbicos de água; em 2000, foram 3.970 – um aumento de quase sete vezes em cem anos. Dado estarrecedor por si só, mas ainda mais alarmante quando nos damos conta de que, nesse período, o número de habitantes sobre o globo cresceu apenas a metade disso, cerca de 3,5 vezes. Ou seja: estamos tirando da natureza o dobro de água do que tirávamos um século atrás, sobretudo para alimentar um mundo cada vez mais faminto. Só a agricultura gasta com irrigação o equivalente a 70% do consumo mundial. E isso bastaria para deixar um bocado de gente com sede, como, de fato, acontece no Mar de Aral – outrora o segundo maior lago da Ásia –, que perdeu dois terços de seu volume nos campos irrigados do entorno, ou no delta do Rio Colorado, no México, que secou por causa das lavouras do Texas, para onde a água foi desviada. Mas apenas o desperdício não justifica porque, mal entrado o século 21, 1,4 bilhão de pessoas – ou 20% da população do planeta – já sofria com a falta de água. Entram na conta também abusos de outra ordem – anteriores, inclusive, às tão noticiadas mudanças climáticas, que parecem ser menos um agente direto da escassez hídrica e mais um tiro de misericórdia num recurso já agonizante pelos excessos da civilização humana. Que não são poucos. Como as alterações no fluxo dos rios para a construção de diques, canais e hidrelétricas, por exemplo – estima-se que existam em torno de 800 mil barragens no mundo. Ou o desmatamento sistemático das florestas ribeirinhas, causador do assoreamento no leito dos rios e da diminuição na recarga dos lençóis freáticos. Ou, também, a má gestão dos recursos hídricos por parte dos órgãos governamentais, que resulta em saneamento ineficiente e perdas significativas por meio de vazamentos. Ou a apropriação dos mananciais por parte de grandes empresas, explorados até o limite da exaustão. Ou ainda, e de maior gravidade, a contaminação decorrente dos dejetos lançados por indústrias, lavouras, pastos e esgotos domésticos. Sim, porque no mundo também falta, sobretudo, água limpa. Um em cada dez habitantes no planeta não tem acesso a uma fonte de água potável. Isso equivale a cerca de 748 milhões de pessoas – imagine o dobro da população dos Estados Unidos bebendo água de rios lamacentos e poços desprotegidos, sem nenhum recurso de filtragem. Em países como Moçambique e a República Democrática do Congo, a falta de abastecimento ultrapassa a metade do número de habitantes. E o pior: na maior parte dos casos, essas pessoas estão consumindo a água contaminada pelo mesmo esgoto que elas produzem. As condições de saneamento no mundo são ainda mais precárias, sobretudo nas nações em desenvolvimento. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), um terço dos moradores deste planeta carece de saneamento adequado, o que inclui desde a falta de coleta e tratamento de esgoto até a mera inexistência de um banheiro. Há mais gente no mundo com um celular na mão do que com um vaso sanitário em casa. Cerca de 14% da população mundial, por exemplo, ainda defeca ao ar livre. O que resulta disso é um dado tenebroso: mais de 2 mil pessoas morrem por dia de diarreia, em decorrência da água contaminada por deficiências no sistema de saneamento. A maioria são crianças de até 5 anos – uma morre a cada minuto no mundo. Antes mesmo que você chegue ao final desta página. Ou seja: não apenas falta água na Terra como, quando tem, ela ainda pode matar. Às vezes, ceifa a vida de centenas numa tacada só, como acontece em enchentes, deslizamentos, tempestades e tufões – estes, sim, efeito das alterações climáticas globais, que não raro chegam para agravar condições de vida que, por si só, já são suficientemente trágicas. Em 2014, um único deslizamento de terra varreu uma cidade inteira no Afeganistão. Quando não é água demais, é água de menos, como acontece nas secas extremas, que têm fustigado os mais diversos pontos do globo – da Califórnia, que vive a pior estiagem dos últimos mil anos, à Somália, onde cerca de 260 mil pessoas morreram de fome entre 2011 e 2012. Não por acaso, a primeira década do século 21 registrou os anos mais quentes desde que as medições globais tiveram início, em 1850. A prova está no fato de que, nos últimos 60 anos, a incidência de desastres de origem geológica, como vulcões, terremotos e tsunamis, não teve nenhuma alteração, ao passo que as catástrofes climáticas – seja por excesso de água, seja por falta – triplicaram entre as décadas de 1980 e 2010. Por trás delas, o dado incontornável de que o planeta está, com efeito, se aquecendo, certamente em decorrência da emissão recorde de poluentes na atmosfera. E o grande veículo por meio do qual isso está interferindo nas nossas vidas é a água. Sobretudo a água doce. Basta um pequeno aumento na temperatura global para que mude o padrão das chuvas, alterem-se o fluxo dos rios, sequem-se os mananciais e derretam-se a neve das montanhas e o gelo das calotas polares. Como sentimos tudo isso? Na forma de verões mais quentes, invernos mais frios, desertos mais secos, ventos mais ferozes e chuvas mais intensas. E, também, em milhares de mortes, severas quebras de safra na agricultura e um planeta ainda mais sedento. Além do colapso hídrico, o século 21 também pode ser marcado pela multiplicação das guerras pela água. Não que isso seja novidade: o registro mais antigo de uma contenda desse tipo data de 2.500 a.C., justamente na Mesopotâmia, quando o rei de uma cidade-estado sumeriana desviou o curso do Rio Tigre, deixando a cidade vizinha desabastecida. E muitos outros conflitos, alguns de grande impacto, tiveram no acesso às fontes de água doce um de seus pontos-chave, como a guerra civil do Sudão, a invasão chinesa do Tibete e a briga entre israelenses, palestinos, sírios e libaneses no Vale do Rio Jordão. Mas, é fato que as disputas têm se intensificado nas últimas décadas, da mesma forma como aumenta a competição pelas fontes que ainda restam. Não é à toa que a palavra “rivalidade” venha do latim rivalis, usado na Roma antiga para designar as pessoas que fazem uso de um mesmo rio. E os rivais hídricos – com o perdão da redundância – têm, com efeito, se multiplicado em todo o mundo, conforme registra, minuciosamente, a organização norte-americana Pacific Institute desde a década de 1980. Só neste século já foram contabilizados cerca de 180 conflitos em torno da água – três vezes mais que nas duas décadas anteriores –, alguns de grande comoção, como a chamada Guerra da Água, ocorrida em 2000 em Cochambamba, na Bolívia, quando a privatização do sistema de abastecimento detonou um levante popular. Se a água como arma de guerra parece impensável, basta saber que, segundo estimativa da ONU (Organização das Nações Unidas), são grandes as chances de que, em 2030, metade da população mundial esteja sofrendo com algum tipo de escassez hídrica. Caso não se tomem medidas até lá, o número de vítimas causadas pela água – em decorrência de doenças, das mudanças climáticas ou da violência – será ainda maior. Por sorte, tem havido avanços. Os índices mundiais de saneamento básico, por exemplo, melhoram a olhos vistos, inclusive antecipando o prazo previsto de algumas metas. Ao mesmo tempo, nações que sofrem com a falta crônica de água doce há anos, senão séculos, estão seriamente empenhadas em encontrar soluções que não dependam da exploração direta do recurso. É o caso dos países do Golfo Pérsico, que investem milhões de dólares em plantas de dessalinização da água do mar. A maior delas, na Arábia Saudita, tem a capacidade de produzir 800 mil metros cúbicos de água doce por dia. E, de quebra, ainda gera energia elétrica. A água de esgoto reciclada também tem sido amplamente usada, inclusive no Brasil – em boa parte das indústrias –, mas sobretudo em países de clima árido, como Israel, onde metade do que é gasto em irrigação vem da água de reúso. Ou como a Namíbia, na África, cuja população bebe desde 1968 água de esgoto tratada. Surgem, ainda, modelos mais inteligentes de irrigação, capazes de reduzir pela metade o volume de água gasto nas lavouras, além de numerosos projetos de despoluição de rios, como aconteceu com o Reno, um dos maiores da Europa, que se viu transformado de esgoto a céu aberto a centro de lazer graças, a um esforço coletivo de vários países e entidades, tanto governamentais quanto civis. Ao cabo de vinte anos, todas as espécies nativas de peixes haviam voltado a nadar no rio. Uma prova de que a cooperação pode ser uma boa estratégia para tempos de colapso hídrico. Nesse sentido, não temos ido tão mal assim. Segundo a ONU, foram registrados mais de 1.200 acordos internacionais relacionados à água nos últimos 50 anos, contra cerca de 500 conflitos. Apesar do evidente aumento nas disputas hídricas, o número de soluções diplomáticas tem se multiplicado num ritmo ainda maior, o que revela, no mínimo, uma disposição para o debate. Se serão suficientes, cabe ao futuro dizer. 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