AÉREAS DO BRASIL
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Cássio Vasconcellos e a geometria da vertigem
Já que toda arqueologia das paixões conduz quase sempre aos primeiros anos da vida de alguém, comecemos por eles. Pois foi ali, na infância, que brotou em Cássio Vasconcellos o amor pelo voo e pela geometria. Não qualquer voo; o de helicóptero, apenas. Gosto adquirido em idade incerta, porém precoce, possivelmente no dia em que ganhou de presente o brinquedo que se tornaria seu predileto. Vertiplano, chamava-se. E consistia de um helicóptero que dava voltas em torno de uma base, preso por uma haste, cuja velocidade e cuja altura podiam ser reguladas por meio de um controle onde constava a seguinte inscrição: “Um bom piloto não larga os comandos”. Cássio não largava nunca. Quanto à geometria, esta despertou na mesma época, antes até da fotografia, por meio da contemplação compulsória das obras de arte que desfilavam pela casa do pai, Paulo, marchand e antiquário. Dado o gosto paterno pelo abstracionismo geométrico, nomes como Alfredo Volpi, Lygia Clark e Amilcar de Castro fizeram parte da educação estética de Cássio desde muito cedo. Educação, sim, porque sempre houve o empenho do pai em mostrar aos filhos tudo o que de mais belo existia no mundo – de quadros a sofás – e ainda desnudar-lhes os mistérios de que são feitas as coisas belas. Cássio Vasconcellos poderia ter virado artista plástico, mas quis o destino que sua alma se expressasse, ainda que geométrica, por meio das fotos. E essas não tardaram em chegar. Bem antes dos helicópteros, inclusive. Não por opção, mas pelo mero fato de que, naquela altura da vida, uma máquina fotográfica estava mais à mão do que uma máquina voadora. A câmera em questão era uma Pentax SP1000, emprestada pelo pai durante uma viagem a Serra Negra no começo dos anos 1980, quando Cássio contava 15 anos. Foram os cliques inaugurais. Dois meses depois, veio a matrícula num curso de fotografia. E, ao cabo de dois anos, a primeira exposição individual. Uma série de retratos produzidos na Rua Augusta, irremediavelmente geometrizada. Voar de helicóptero Cássio sempre quis, mas só conseguiu fazê-lo aos 24 anos, quando surgiu a oportunidade de fotografar, do alto, um terreno em Itu, propriedade de um amigo do pai. A foto foi o de menos – melhor foi a viagem de volta, em que o piloto, percebendo a curiosidade do garoto, pôs-se a demonstrar as manobras das quais a máquina era capaz. Medo, Cássio jura que não teve. Pelo contrário: tocou o chão tomado pelo fascínio que desde a infância vinha se aninhando e que ali se convertera em certeza. No segundo voo que fez, já pediu comando duplo. A visão do alto, claro, era arrebatadora, mas muito mais sedutora para Cássio era a liberdade que aquela máquina lhe concedia. Helicópteros, ao contrário de aviões ou quaisquer outros artefatos voadores de invenção humana, têm a capacidade de pousar e pairar onde quer que a vontade determine. Para um fotógrafo, cuja posição no tempo e no espaço pode definir a grandeza de uma imagem, isto faz toda a diferença. Daí que, a certa altura, Cássio entendeu que não bastava o banco do copiloto: precisava entender aquela máquina. Alistou-se, então, num curso de pilotagem de helicóptero. Seis anos depois do voo iniciático, estava já de posse de um brevê. Podia conduzir seus próprios vertiplanos. Como fotografar e pilotar são atividades incompatíveis, Cássio contentou-se com o conhecimento adquirido, que diz ser de grande valor no momento de planejar o voo e comunicar-se com o piloto. Máquina, então, torna-se o corpo aéreo do fotógrafo, extensão natural do desejo de alcançar a distância exata, o ângulo perfeito. Nem que, por vezes, o assento tenha de manter-se perpendicular ao solo. De novo: no céu, Cássio garante que não há espaço para o medo. Não de acidente. Talvez o receio de que a câmera caia no chão – ou na cabeça de alguém. De resto, ele confessa que se sente mais seguro no ar do que em terra. Principalmente quando sobrevoa a Dutra. De voo em voo, Cássio Vasconcellos já acumula 800 horas no céu, das quais 100 com a mão no manche, nas aulas de instrução. Sim, tornou-se um especialista do ar, requerido tanto pelas galerias de arte quanto pelas agências de publicidade e as incorporadoras, estas interessadas em registrar a área de seus futuros empreendimentos. Esses trabalhos comerciais são importante manancial de fotografias inadvertidas, pois, enquanto um olho permanece leal ao cliente, o outro se mantém atento às adjacências, pronto para capturar uma imagem que, sem aviso, o chão possa lhe revelar. Como as caronas aéreas que Cássio às vezes pega, só pela oportunidade de aumentar sua coleção de fotografias do Brasil visto do céu. Numa dessas, acompanhou um piloto que partiu de Fortaleza com destino a Trancoso, onde iria buscar o patrão. Em quatro dias de viagem, Cássio recolheu algumas de suas melhores imagens do Nordeste brasileiro – um amplo repertório de praias, dunas, salinas e arrecifes. Mais interessante ainda foi a jornada feita em 2011, em que, a convite de um amigo, integrou a pequena comitiva que veio trazer um biturbina recém-comprado no Canadá. Foram 15 dias de Montreal a São Paulo, quase um cruzeiro aéreo – Caribe incluído. Cássio cultiva, sim, o hábito de rastrear o Google Earth à cata de possíveis imagens – sábia maneira de pôr a tecnologia a serviço da arte. Mas as melhores são quase sempre produto do acaso. Sobretudo quando, visto do alto, o mundo revela geometrias imprevistas, não raro irreconhecíveis ou, quando muito, semelhantes a qualquer outra coisa que não um pedaço de cidade ou do relevo do planeta. Assim, laranjais no interior paulista podem ser tão inesperadamente abstratos como um conjunto de salinas no litoral potiguar. Da mesma forma como São Paulo, sob a névoa do amanhecer, pode transfigurar-se numa estranha cordilheira de concreto. Se já há qualquer coisa de epifânico no ato de reconhecer, do céu, o que já foi observado ao rés do chão, que dirá na arte de Cássio Vasconcellos, onde um único clique tem o poder de transformar a geografia na mais pura geometria. É a Terra como Volpi. Ou Lygia Clark. Mas nem tudo, claro, é abstracionismo. Seria condenável até, de certo modo, geometrizar a voluptuosidade das curvas cariocas, por exemplo. Se nem Niemeyer o fez, Cássio – esteta de mesma estirpe – também não ousaria. No máximo o pontilhismo involuntário dos guardassóis de Copacabana, mas jamais as montanhas da Tijuca. Muito menos os contornos que mar e baía se encarregaram de desenhar, desobrigando todo artista de qualquer abordagem que não a contemplação reverenciosa ou o registro complacente. E é exatamente como a lente de Cássio se entrega a essas paisagens – não só às do Rio de Janeiro como às outras tantas que o Brasil compreende em seu território, igualmente suntuosas. Incluam-se aí lugares como os cânions do Sul, a Amazônia e o Pantanal. Nesses, como na capital fluminense, a grande angular faz-se quase obrigatória. O resto (a arte) é enquadramento e luz. E há o homem, cuja presença nas imagens de Cássio se manifesta tanto em sua existência ínfima – que soa ainda mais vulnerável quando vista de cima –, quanto na admirável capacidade de transformar a paisagem para atender às necessidades vitais. Por vezes são intervenções gentis, como fazem as redes de pesca que decoram o litoral de Alagoas ou as estradas que ziguezagueiam em respeito à encosta das serras. Mas muito do Brasil que se vê do alto é o Brasil do avesso: o país devassado pela ocupação humana cuja visão panorâmica nos revela a trágica dimensão do progresso predatório. Somos também a nação das lavouras infinitas, das cidades monstruosas e dos restos de civilização esquecidos em lixões e ferros-velhos – carcaças de aviões, motos enferrujadas, orelhões empilhados e outros resquícios com os quais ninguém sabe o que fazer. Mas Cássio sabe: transformar tudo isso em graça e simetria para que, por meio da beleza, desperte-se o assombro e floresça a consciência sobre os destinos do país e do planeta. É a mesma lógica por trás da premiada série Coletivos, painéis monumentais em que, à maneira de um geômetra demiurgo, Cássio recolhe fragmentos de suas fotos aéreas e compõe, por meio da replicação seriada de itens como carros, aviões e guardassóis, as mais improváveis paisagens humanas. Todas espantosamente multitudinárias. Já são centenas as imagens coletadas nestes 25 anos de voos de helicóptero, boa parte das quais reunidas pela primeira vez nas páginas que se seguirão. Houve, sim, incursões aos céus estrangeiros, mas neste livro quem nos fala é o Brasil, tal como traduzido pelo olhar de Cássio Vasconcellos. É a confluência definitiva de dois milagres do engenho humano – o voo e a fotografia –, a serviço de uma nova visão sobre o país. O que outros inventaram, Cássio reinventa. Do céu, sempre, que é onde ele gosta de estar. Mesmo em casa, é perto das nuvens que ele escolheu ficar – precisamente no 28º andar de um edifício na Vila Olímpia, Zona Sul de São Paulo. Ali ele mora e trabalha, dedicado a recriar o mundo sob os efeitos da altitude. Na parede do escritório, localizado num mezanino ainda mais próximo do céu, uma coleção de mais de cem helicópteros de brinquedo concede certo ar de templo ao lugar. Na galeria de relíquias, só falta o Vertiplano. Mas este já pertence aos domínios da memória. |