Reportagem publicada na revista Lonely Planet em julho de 2013. Fotos aqui .
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Burkina Faso, muito prazer
Sua Majestade o vigésimo-nono rei do povo gan tem 14 esposas, 71 filhos e 50 mil súditos. Tem certo poder de mando também, verdade seja dita, ainda que circunscrito a uma pequeníssima área ao sul da cidade de Gaoua, perto da fronteira com a Costa do Marfim. O rei, porém, nos recebeu como convém a um monarca de porte, devidamente cercado de aparato e protocolo. Foi quase como uma audiência. Ele nos aguardava debaixo de uma árvore de copa generosa no quintal de sua casa, na aldeia de Obiré, vestindo uma longa túnica azul-celeste e sentado numa espreguiçadeira, dessas que ficam na varanda de hotéis de praia, que aqui cumpria função de trono. Estava um bocado desconfiado no início, mas não tardou a se soltar. Ao final do encontro, deixava até tirar foto com cada um dos integrantes de nossa pequena comitiva. É um rei jovem, de 32 anos, o que talvez explique a insegurança inicial. Disse que assumiu o trono há apenas cinco anos, quando os ancestrais, por meio de um frango sacrificado, decidiram que ele seria o próximo líder de seu povo. Na ocasião, passou um mês preparando-se para o cargo, dedicado a diversos rituais de proteção. “Quando você se torna rei, não é fácil. Você precisa fazer algo para se proteger, senão tem gente que pode te invejar”, justifica. E com razão: um dos privilégios do rei gan é herdar as esposas do soberano anterior. Reis assim ainda existem aos montes em toda a África, mas são particularmente numerosos em Burkina Faso, onde funcionam como mediadores entre o governo central e a população. No passado, antes da colonização francesa, foram monarcas poderosos e senhores de vastas extensões de terra. Hoje seu poder é quase nulo, mas só o reconhecimento do governo já é o bastante para acalmar os ânimos locais – sobretudo numa nação onde, dentro de uma área equivalente à do Rio Grande do Sul, convivem cerca de 60 etnias diferentes. Para se ter uma ideia, o próprio presidente do país não toma nenhuma decisão importante sem antes consultar o moro-naba, rei dos mossis, os guerreiros cujo sangue hoje corre em metade da população de Burkina Faso. O povo é, de longe, a principal razão pela qual alguns poucos (pouquíssimos, na verdade: em 2010, foram 274 mil) viajantes incluem este pequeno e desconhecido país da África Ocidental em seu roteiro. Aqui não há safáris de luxo, grandes paisagens ou belas cidades. Nem mesmo praias Burkina Faso tem. Na partilha da África Ocidental, os franceses não foram nada gentis com a colônia que chamavam de Alto Volta: devido à escassez de recursos naturais, tiraram-lhe o acesso ao mar e deram-lhe as costas. Serviam-se dela apenas como fonte de mão-de-obra para o trabalho nas plantações das colônias vizinhas. Mesmo a independência, em 1960, trouxe poucos avanços. Desde então, o país manteve-se à margem tanto do jogo geopolítico mundial quanto do turismo. O lado sombrio disso é que Burkina Faso permanece até hoje uma das nações mais pobres do planeta, dona de indicadores sociais arrepiantes: a população é 80% analfabeta, a expectativa de vida não passa dos 50 anos e o Índice de Desenvolvimento Humano está entre os dez mais baixos do mundo, para citar alguns exemplos. Por outro lado, diversas tradições arcaicas mantiveram-se de pé, a salvo da globalização – uma mostra disso é a permanência dos reis tribais. Ao mesmo tempo, o desinteresse global fez despertar no povo um senso de coletividade raro, cujo motor é aquela fé na vida que só os africanos sabem ter. Como me disse um guia na cidade de Banfora, “fazemos tudo pelo desenvolvimento do país”. Burkina Faso é um país de muitas surpresas, mas a maior delas talvez seja perceber o quanto a sociedade, apesar de vítima de um subdesenvolvimento galopante, parece mergulhada no mais contagiante otimismo. Na África Ocidental, os burquinenses são conhecidos como um povo sorridente, descontraído e festeiro. Para o viajante, não há melhores anfitriões. Dado seu imenso grau de mobilização social, parece até que eles ajeitaram o país só para nos receber. Tomemos como exemplo Bobo-Dioulasso, segunda maior cidade do país. Foi a primeira que visitei. E qual não foi a surpresa ao dar de cara como uma metrópole de ruas limpas e arborizadas, repleta de hotéis e restaurantes bem mais do que aceitáveis e farta em serviços como internet rápida e caixas eletrônicos. Seria um óbvio preconceito fazer como o presidente Lula em 2003, quando, ao visitar a capital da Namíbia, deixou escapar a tal gafe do “nem parece África”. Mas havemos de convir: o que se pode esperar de um país onde metade da população vive com menos de 1 dólar por mês? “O povo de Bobo-Dioulasso é muito organizado”, diz Simon, meu guia na cidade. A tal ponto que, diariamente, as mulheres levantam-se cedo para um mutirão de limpeza nas ruas. Some a extensa arborização e você entenderá porque esta é a cidade mais agradável de Burkina, mais até que a capital Ouagadougou. Seu nome vem da união das duas etnias predominantes: os bobos, lavradores animistas, e os dioulas, mercadores muçulmanos. Estes rezam na Grand Mosquée, a maior, mais antiga e mais bonita mesquita da cidade. O edifício foi construído há cerca de cem anos no chamado estilo Sahel, no qual as paredes de argila são sustentadas por vigas de madeira. Todo ano, depois das chuvas, parte do barro derrete – é quando um mutirão entra em cena para restaurar a mesquita. Tem sido assim há mais de um século. Os bobos também rezam lá, até porque também eles são oficialmente muçulmanos. Mas, ao contrário dos dioulas, estes não abriram mão de sua fé nos espíritos da natureza. Basta uma volta por Kibidwe, o bairro onde eles se concentram, vizinho à mesquita, para topar a cada esquina com o sangue coagulado dos sacrifícios. Sempre que há uma questão pendente, seja de justiça ou familiar, é costume de muitos povos animistas africanos retalhar uma cabra, um frango ou um carneiro como forma de pedir conselho aos ancestrais. No caso dos bobos, para horror geral, eles também sacrificam cães. Festa bobo sem carne de cachorro, aliás, não é festa. Até as crianças comem. É gosto tão arraigado que mesmo o guia Simon, cristão declarado, não dispensa um churrasco canino. “Acho muito bom. Se quiser, te levo para comer no almoço. Conheço um restaurante ótimo.” Bobo-Dioulasso serve também como porta de entrada para o sul do país, onde a terra é fértil e as chuvas, generosas. Enquanto o norte tomado pela savana semi-árida sofre com a seca e os piores indicadores sociais possíveis, o sul se apresenta todo tropical, cheio de florestas e rios. Burkina Faso é mais bonito ali, sobretudo na região de Banfora, perto da fronteira com o Mali e a Costa do Marfim. Valem a visita os Pics de Sindou, um impressionante conjunto de formações rochosas, e o lago de Tingrela, tido como o mais belo do país. Se for, vá à tarde, que é quando o sol banha de laranja a mata ao redor e os pescadores enchem o lago de canoas. É também quando os hipopótamos aparecem. Não são muitos, mas se há um lugar para vê-los em Burkina, é aqui. Bichos são raros nesta parte da África, mas Burkina Faso, justo por ter parte de suas florestas preservadas, contém um bom número de espécies em seu território. Não espere, porém, manadas de gnus nem lodges suntuosos. Tudo aqui é low profile (inclusive o número de animais), mas honesto o bastante para satisfazer certos níveis de exigência. Grata surpresa, aliás, foi descobrir no Ranch de Nazinga, perto da fronteira com Gana, uma estrutura que pouco deixa a dever a algumas pequenas reservas da África do Sul, por exemplo. O parque é fruto do esforço de dois irmãos canadenses, que na década de de 1980 fizeram um amplo trabalho junto às comunidades locais para erradicar a caça e recuperar a fauna. Hoje administrado pelo governo, Nazinga tem 20 mil animais em sua área. Desses, cerca de 800 são elefantes. No mesmo sul onde restam os animais selvagens, sobrevivem também as velhas tradições animistas. Quanto mais o território se afasta do norte, mais distantes ficam os países do Saara e a influência exercida pelo Islã. Talvez por ser também uma zona de florestas, o povo aqui parece mais apegado ao culto dos espíritos da natureza, compartilhando das mesmas raízes que desembocaram, por exemplo, no candomblé afro-brasileiro. Burkina Faso é um país de maioria islâmica (60% da população diz-se muçulmana), mas há 15% que se declara animista, segundo os dados oficiais. São as etnias que se concentram no sul do país. Acredita-se, porém, que os tradicionalistas sejam muitos mais, espalhados por todo o território, embora não-declarados. Há um ditado em Burkina segundo o qual "50% da população é muçulmana, 50% é cristã e 100% é animista". Veja o que diz Simon, o guia de Bobo-Dioulasso que se apresenta como cristão, filho de muçulmanos e neto de animistas: "Eu acredito em Deus, mas também acredito nas minhas tradições. Quando estou com algum problema, vou à minha aldeia e sacrifico uma galinha". Entre os povos que se assumem animistas, os mais orgulhosos são os lobis, moradores da região de Gaoua, não muito distantes do rei gan (aquele do início do texto). Durante os anos da colonização, foram os únicos a fazer oposição feroz aos franceses, defendendo-se dos invasores com flechas envenenadas. Hoje são pacíficos: deixaram de ser guerreiros e caçadores de elefantes para tornar-se plantadores de milheto, cereal dos mais importantes para a subsistência neste pedaço da África. Mas não perderam a desconfiança com os forasteiros. Suas casas de barro parecem pequenas fortalezas: as portas são estreitas, o teto é baixo e os cômodos estão dispostos como num labirinto. No telhado, diversos buracos servem de via de escape para o caso de um ataque. Não por caso, é lá também onde estocam os grãos. O orgulho na verdade é um dos traços mais marcantes do povo de Burkina, seja de qual tribo for. Nem todos são como os lobis, claro – a grande maioria faz do amor a seu país uma força comunitária voltada para a superação dos infortúnios. Fato emblemático é que o índice de emigrantes no país é baixíssimo. Quase não há burquinabês fora de seu país, ao contrário de senegaleses, malineses, nigerianos e outros vizinhos. “Temos orgulho do que somos”, diz Simon. “Somos pobres de dinheiro, mas espiritualmente ricos”. Tem a ver com a genética, tem a ver com o crescimento econômico – hoje na casa dos 5% – e tem a ver, sobretudo, com um homem chamado Thomas Sankara. Sankara foi um líder revolucionário marxista, na linha de Che Guevara, alçado ao poder em 1983, depois de um golpe de estado. Poderia ter sido mais um entre os muitos ditadores africanos, mas decidiu levar a sério a incumbência de chefiar uma nação. No pouco tempo em que esteve no poder como presidente, Sankara melhorou a condição das mulheres, construiu 350 escolas, combateu a corrupção, vacinou em 15 dias dois terços das crianças contra febre amarela e meningite e ainda fez a economia crescer – fato raro para a época. Também rebatizou o país, que ainda mantinha o nome de Alto Volta, herdado dos franceses, para Burkina Faso, que significa “Terra dos Incorruptíveis”. Despertou, por fim, no povo burquinabê um senso inédito de patriotismo, que ainda hoje se preserva. Como era de se esperar, Sankara durou pouco no cargo. Foi morto num novo golpe em 1987 por um de seus colegas, Blaise Compaoré. Este se mantém no poder até hoje, após vinte e cinco anos e quatro vitórias sucessivas em eleições presidenciais (sob fortes alegações de fraude). Está longe de ser amado como era Sankara, mas granjeou certa simpatia de seu povo ao investir na agricultura, na saúde e na infraestrutura. Quem viaja por Burkina Faso há de notar como são boas as estradas e a oferta de serviços nas cidades. Compaoré também alcançou o feito, ainda que por vias tortas, de brindar ao país uma paz que os vizinhos desconhecem. Faz mais de duas décadas que não há conflitos em Burkina. Foi assim, em paz consigo mesmo, que o povo burquinabê encontrou sua verdadeira vocação: irradiar cultura e alegria. Por conta da estabilidade política, Burkina Faso sedia alguns dos mais importantes festivais artísticos da África, dedicados a áreas como música, teatro e cinema. Um é o Fespaco, o maior evento cinematográfico do continente, e outro a Siao, a principal feira africana de artesanato. Ambos acontecem na capital Ouagadougou – que, se não tem o charme de Bobo-Dioulasso, no mínimo parece incrivelmente ajeitada para uma capital africana. Ouagá, como a chamam, foi o ponto final da minha visita. Um belo contraste com o rei do povo gan: aqui há grandes avenidas, hotéis de nível internacional, jardins meticulosamente aparados, livrarias, cybercafés e, sobretudo, uma intensa vida cultural. Trampolim para a carreira internacional de diversos músicos e cineastas locais, a capital burquinabê virou uma espécie de referência na África Ocidental para o que há de mais interessante acontecendo em termos de cultura. A música hoje é um dos principais artigos de exportação do país, e basta ir a um dos muitos maquis de Ouagá para entender porque. É lá, neste misto de bar e danceteria, que o povo de Burkina ferve e se diverte, mergulhado num êxtase coletivo que traduz com perfeição seu esforço tenaz em transformar este miserável pedaço de terra numa nação. Enquanto a vida não melhora, eles dançam. |