CASA SANTA LUZIA
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Na metrópole do café, nasce um empório
Tudo começou com uma carta. E era carta oficial, lavrada em papel timbrado, endereçada a um certo Daniel Lopes, jovem morador de Figueiró dos Vinhos, pequena freguesia no centro de Portugal. Datava de 21 de outubro de 1912. Nela, a inspetoria de imigração do distrito de Leiria não só concedia ao rapaz a autorização para viajar ao porto brasileiro de Santos como ainda solicitava que não pusessem “embaraço algum ao portador”. Do outro lado do Atlântico, em Santos, esperava-lhe uma tia, e isso era tudo. Daniel não tinha outros parentes nem garantia de emprego. Tinha apenas 23 anos e o firme desejo de tentar a sorte em outro lugar que não Figueiró dos Vinhos, vila beirã de poucos habitantes, abancada num morro entre o Rio Zêzere e a Ribeira de Alge. Lugar bonito, mas de poucos acontecimentos. Daniel Lopes aportou em Santos poucos meses depois. Por conta da tal tia, não fez como a maioria dos recém-chegados, que subiam de trem até a Hospedaria dos Imigrantes, no bairro da Mooca, em São Paulo. Como tinha onde morar, ficou por lá mesmo. E, por falta de melhor trabalho, pôs-se a empalhar cadeiras. Até tinha jeito para a coisa, mas o espírito do rapaz era por demais inquieto para manter-se ali, no porto de chegada. Logo Daniel partiu para o interior do estado, que era onde as lavouras vicejavam e o desenvolvimento grassava, suplicando por gente nova. Primeiro ele foi para Orlândia, e de lá para outras cidades. Percorreu todo o interior, no começo como comerciante de cereais, depois como empreiteiro. Por onde andava, valia-se das habilidades aprendidas em Figueiró dos Vinhos com o pai, construtor de estradas e mestre de carpintaria. Em Quatá, conheceu Lúcia Rigonato, filha de imigrantes italianos, e fez dela sua esposa. E, logo depois, os dois se mudaram para São Joaquim da Barra, onde passariam algum tempo na Fazenda Peroba, da família Junqueira. Ali, Daniel foi o responsável pela construção de uma casa de beneficiamento de café, e com esse serviço juntou dinheiro suficiente para tentar a sorte num lugar à altura de suas ambições. Então, tocou-se finalmente para a capital com a mulher e as três primeiras filhas: Olímpia, Rozalina e Alzira (mais dois filhos nasceriam em São Paulo, Álvaro e Elza). Era já o início dos anos 1920 e Daniel Lopes tinha uma cidade para conquistar. Como gostava de dizer, “seja sempre o primeiro, porque entre o segundo e o último não há diferença”. O ânimo empreendedor parecia ser o denominador comum dos cerca de 750 mil portugueses que imigraram para o Brasil nas primeiras três décadas do século 20. Sobre as outras nacionalidades, tinham a vantagem do idioma, que lhes dava maior mobilidade na nova terra e os desobrigava de engajar-se nas lavouras de café – muitas vezes a única opção para quem desconhecia a língua nativa. Os portugueses, além disso, dispunham também de numerosos patrícios, previamente estabelecidos em solo brasileiro, que facilitavam a criação de poderosas redes de solidariedade onde quer que estivessem assentados. E não eram poucos os lusos por aqui. Só no ano em que Daniel Lopes chegou, 1913, outros 76 mil conterrâneos haviam percorrido o mesmo caminho. No ano anterior, a mesma cifra. Foram os dois anos de pico em toda a história da imigração portuguesa no Brasil, em grande medida decorrentes de uma grave crise que se propagava nos campos lusitanos. Lá, o empobrecimento do solo, a mecanização do campo, o crescimento da população e as tensões políticas eram apenas alguns dos entraves que tornavam a vida um bocado mais difícil. E que nada faziam senão empurrar as pessoas para longe da Península Ibérica. Nessa época, muitos rumavam para São Paulo, onde o café, desde meados do século 19, vinha operando enorme salto de desenvolvimento. Os portugueses podem não ter servido nas lavouras como outros imigrantes, mas tiveram papel importante na exportação dos grãos, na expansão da malha ferroviária e, sobretudo, no florescimento da indústria e do comércio na capital. São Paulo, convém lembrar, tornava-se naquele momento uma metrópole afluente e cosmopolita, nutrida pelo dinheiro do café e enriquecida pela presença de milhares de imigrantes, na maioria portugueses, italianos e espanhóis. Em 1920, São Paulo contava cerca de 580 mil habitantes, dos quais 206 mil eram estrangeiros. Ou seja, um terço dos paulistanos falava com sotaque. Muitos viviam nos bairros operários que se multiplicavam ao redor do centro, como Mooca, Brás, Ipiranga e Bom Retiro. Já outros espalhavam-se pela cidade com seus armazéns, suas lojas, suas padarias e seus bares. No mesmo ano de 1920, dos 30 mil paulistanos envolvidos no comércio, quase 20 mil eram imigrantes. Desses, boa parcela era de portugueses, cujo tino para os negócios logo os fez artífices da expansão comercial na cidade. Para onde São Paulo crescesse, eles estavam lá. Com Daniel Lopes, não foi diferente. Uma vez instalado na capital com a família, Daniel fez seu primeiro investimento. Comprou de um italiano uma mercearia modesta, a Empório Nazário, situada na esquina da Rua Augusta com a Marquês de Paranaguá. O negócio durou pouco, pois Daniel logo percebeu que oportunidades melhores o aguardavam em outro lugar, não muito longe dali. Caminhando pela região da Paulista, viu um novo bairro sendo construído ao sul da avenida, loteado pela Companhia City. Era uma zona de magníficos casarões, erguidos para abrigar a nova elite paulistana. Tinha todos os benefícios de que se podia dispor na época, mas faltava um armazém. Então, Daniel Lopes enxergou o futuro. Na esquina da Augusta com a Oscar Freire, alugou a casa onde antes funcionava uma tinturaria. E lá, em 13 de dezembro em 1926, abriu seu novo empório. Como era dia de Santa Luzia, Santa Luzia se chamou. (texto completo no livro) |