Reportagem publicada na revista Terra em janeiro de 2006. Fotos aqui.
|
Um novo império
Quem diria: Mickey e Pateta agora falam cantonês e perambulam por uma área projetada segundo as regras do feng shui. A primeira Disneylândia em solo chinês abriu suas portas no último dia 12 de setembro, quando 16 mil pessoas afluíram para a Ilha de Lantau, em Hong Kong, para ver de perto o fruto de um investimento de 2 bilhões de dólares. Até o fim do ano, mais de 1,5 milhão de chineses já haviam feito o mesmo. Três dias antes, quase o mesmo número de pessoas aglomerava-se no remoto vilarejo de Shaoshan, na província de Hunan, a 600 quilômetros de Hong Kong. Estavam aqui para lembrar a morte de Mao Tsé-tung em sua cidade natal. E, quem sabe, para comprar um isqueiro, um chaveiro, um relógio ou um amuleto com a estampa do grande líder, desses que são vendidos em barraquinhas à volta da velha casa transformada em museu. Os amuletos são muito populares, perfeitos para se pendurar no espelho retrovisor: diz-se que afastam os maus espíritos. Um outro museu conta a vida do Grande Timoneiro e exibe orgulhoso suas ceroulas enquanto alto-falantes bradam canções revolucionárias. Do lado de fora, uma estátua de bronze recebe as mesuras da população visitante. Os chineses, alguns jovens, depositam flores, dão três voltas em torno da imagem, curvam-se, ajoelham-se, rezam, fazem pedidos. No último grande refúgio do comunismo no planeta, no mesmo país que acolhe Mickey e Pateta, o velho Mao, quem diria, está virando deus. Primeiro provérbio chinês: “Uma vez sobre o dorso do tigre, não há como descer”. As contradições da China são contradições apenas para nós. Entre os chineses, para quem as lógicas do Ocidente não fazem o menor sentido, saborear ovos apodrecidos e escorpiões fritos é tão plausível quanto mastigar um Big Mac. Comunismo e consumismo são perfeitamente compatíveis. E por que não comprar caranguejos vivos num duty free do aeroporto de Xangai antes de embarcar numa viagem de negócios a Paris? O fato é que a China está empreendendo uma das maiores transformações já vividas por um povo em toda a História. Talvez a mais rápida. Há 30 anos apenas, o país ainda vivia sob o signo da Revolução Cultural, experiência desastrosa capitaneada por Mao que consistia em eliminar qualquer vestígio de cultura tradicional asiática. O saldo de mortes – por execuções, fome ou trabalhos forçados – estima-se em 1 milhão de pessoas. Os chineses reconhecem os erros do fundador da China comunista, mas garantem que isso não arranha sua reputação, tamanho o culto à sua personalidade mesmo três décadas após sua morte. Os próprios colegas de Partido Comunista reconheciam que as estratégias políticas de Mao poderiam ser um entrave ao desenvolvimento. Por isso sua morte em 1976 abriu caminho para a ala reformista do governo chinês, encabeçada por Deng Xiaoping. Dois anos depois, os mandatários saíam-se com um extravagante “socialismo de mercado”, política que consistia em conciliar abertura econômica e controle do estado. Soa incoerente? Não na China, há milênios acostumada aos paradoxos. O primeiro passo foi abrir uma faixa no litoral aos investimentos estrangeiros, dividida em Zonas Econômicas Especiais (entre elas Xangai e Cantão). Mas com restrições: os de fora só poderiam entrar caso se associassem a alguma empresa local, fosse estatal ou coletiva. Era uma forma de proteger o mercado interno. Quando as firmas chinesas aprenderam os macetes do Ocidente, o governo liberou a concorrência para os forasteiros e a propriedade privada para os nativos. Além de derrubar o monopólio, isso aqueceria a economia. E que aquecimento: hoje a China cresce espantosos 9% ao ano. Em todo este tempo, o Produto Interno Bruto do país quadruplicou, o montante negociado no comércio exterior saltou de 20 bilhões para 800 bilhões de dólares e a renda per capita aumentou 20 vezes. Enfim, a China já é a sétima maior economia do mundo. Se o PIB for medido pela paridade do poder de compra, que elimina a flutuação cambial, torna-se a segunda maior, atrás apenas do americana. A área de desenvolvimento de Teda, no porto de Tianjin, é um bom exemplo. Em 10 anos, o pântano usado para secagem de sal tornou-se um reluzente complexo de edifícios espelhados, ruas limpas e gente sorridente. Hoje abriga 3800 empresas de 74 países, da estirpe de Coca-Cola, Panasonic, Toyota e Nestlé. Num único ano, gerou um PIB de 6 bilhões de dólares, superior ao de quase metade dos países do mundo. Outro exemplo? O porto de Qingdao, erguido em apenas quatro anos e quatro vezes a capacidade do porto de Santos. A China parece estar querendo tirar o atraso da Revolução Cultural. E tem pressa. E tem gente. Um quarto da força de trabalho mundial suando de forma barata e disciplinada: inclua-se aí uma milenar obediência ao Estado, a ausência de sindicatos e um custo de vida bem abaixo dos padrões mundiais. Uma construtora chinesa, veja só, é capaz de erguer 2 milhões de metros quadrados em apenas um ano. O país está repleto de guindastes, e eles estão tornando as cidades chinesas demasiado parecidas umas às outras – que, por sua vez, estão cada vez mais iguais às do Ocidente. Adivinhe onde foi aplicado metade do concreto usado no mundo no ano passado? Segundo provérbio chinês: “Ser rico é glorioso”. Esta máxima é de autoria de Deng Xiaoping, proferida no fervente início da abertura econômica. Na cabeça da população, virou pensamento milenar e ordem expressa do partido. Junto com Mao, o dinheiro parece ser a divindade predileta dos chineses. Para quem há 20 anos fazia suas necessidades em privadas coletivas, era proibido de ter carro ou televisão e era obrigado a usar assexuados casacões cinzentos, até o direito a um Rolex falsificado soa como uma bênção de Buda. A China já tem seus milhares de milionários, alguns bilionários. Imagine: o número de mulheres com diamantes em Xangai é maior que o de todas as japonesas reunidas. Há três anos, até os membros do Partido Comunista Chinês foram autorizados a entrar no mundo dos negócios. Alguns deles certamente já devem ter assinado a revista Vogue, que em setembro lançou seu primeiro número em mandarim, com Gisele Bündchen na capa. Quem também está ganhando muito dinheiro são os consultores especializados em ensinar os xiaozi – novos ricos – a beber vinho, comportar-se à mesa e escolher entre um terno Armani e um Zegna. No outro extremo, o país tirou 400 milhões de pessoas da linha de pobreza nas últimas décadas. E exibe uma classe média que é quase o dobro da população brasileira, menina-dos-olhos de todo o mercado internacional. Afinal, são 300 milhões de chineses com salário médio de 2 mil dólares encantados com a possibilidade de gastar suas cédulas com a estampa de Mao em computadores, celulares, Big Macs e ingressos da Disneylândia. Vamos a mais números: a idade média da população é de 32 anos. Em cifras absolutas, metade dos chineses tem menos de 30 anos. Ou seja, conhecem a Revolução Cultural apenas nos livros de História, já que o assunto é tabu entre seus pais. Nasceram numa era onde a propriedade privada é liberada, a qualidade de vida é melhor e há mais acesso a emprego, à universidade e à informação. Como quase todo jovem do terceiro mundo, adoram tudo que venha de fora, de preferência dos Estados Unidos. Falar inglês é motivo de honra, ainda que num sotaque aflitivo, e não raro abordam turistas na rua com o mero intuito de praticar a língua. É bom lembrar que foram os jovens os articuladores da primeira grande manifestação do povo chinês por reformas democráticas, em 1989. Embora o protesto tenha terminado num vergonhoso banho de sangue – o Massacre da Praça da Paz Celestial –, suas idéias inspiraram a geração seguinte. Hoje a garotada está menos chinesa e menos comunista, porém mais atrevida. Nos mais de 2 milhões de blogs que há na China, dispensam as papas na língua, falam de política, de liberdade. E estão até demonstrando sinais de afeto em público, uma afronta não só ao velho Mao como à própria cultura oriental. Terceiro provérbio chinês: “Assim como você inspira e expira, às vezes você está à frente, às vezes você está atrás.” No entanto, os jovens chineses continuam gostando de Mao. Aliás, são a maioria entre os milhares que todo dia fazem a longa fila para ver o corpo embalsamado do Grande Timoneiro em seu mausoléu de Pequim. Sim, a China está mudando, mas a velha ordem, como sabemos, navega em águas mais vagarosas. Tal qual o Partido Comunista, a tradição ta mbém decreta seus imperativos. Ainda mais numa civilização que já acumula 5 mil anos. A China é um país enorme, e não é de se espantar a coexistência do século 21 com a Idade Média no mesmo território. Imagine que, não muito longe das ricas metrópoles do sul, o povo ainda pesca com a ajuda de patos e cormorões. Em regiões como Tibete e Xinjiang, no extremo oeste, muitos camponeses ainda se sobressaltam diante de ocidentais de olhos grandes e braços peludos.Mas o que realmente surpreende na China de hoje é a convivência da tradição e da modernidade num único espaço, completando-se, misturando-se, confundindo-se. Em Xangai, talvez a metrópole mais alvoroçada e iluminada da China, gravatas e tailleurs desfilam pelas ruas lado a lado com pijamas – sim, eles saem às ruas de pijama. A nova elite gasta milhões com arquitetos e designers moderninhos para erguer prédios que seguem à risca as regras do feng shui. Nas construções, ainda são usados andaimes de bambu. Também não é raro topar com edifícios arrojados sem o quarto andar: o número 4 na China está associado com a morte, já que ambos têm pronúncia semelhante (shi). Um número de celular com algum 4 será mais barato que outro com o número 8, que está ligado à prosperidade. Recentemente, o número 8888-8888 foi vendido por 2 milhões de dólares. Note a data de abertura dos Jogos Olímpicos de Pequim: 8 de agosto de 2008. Não há transação, por mais milionária que seja, feita sem chá. Negociar com subalternos, jamais, apenas com os chefes. Nos jantares, os lugares à mesa são rigorosamente determinados de acordo com o status de cada um. Ao mesmo tempo, ninguém se incomoda em fechar acordos sorvendo ruidosamente uma sopa de barbatana de tubarão. Ou mastigando um filé de cachorro, iguaria de altíssimo padrão em Cantão – onde dizem que se come tudo que tenha quatro patas, exceto a mesa. Você quer comprar sapos e tartarugas vivos? Ora, vá a qualquer Carrefour do país. Eles estão na seção de carnes. As relações sociais são assunto sério na China, e estão profundamente enraizadas no pensamento confucionista, que observa com cuidado a hierarquia, os interesses recíprocos e os códigos de conduta herdados dos ancestrais. Também o taoísmo, a maior das religiões nativas, exerce uma influência fundamental na cultura chinesa. É 1 bilhão de pessoas movendo-se sob o signo do yin e do yang: duas forças que se opõem e se completam como a noite e o dia, o inverno e o verão, o silêncio e o ruido, a tradição e o progresso, o espetinho de escorpião e o Big Mac, a repressão política e a abertura econômica. Quarto provérbio chinês: “Há sempre ouvidos do outro lado do muro”. É bom lembrar que a China continua sendo um país governado pelo Partido Comunista. Mao se foi, a grana entrou, mas o Estado continua sendo o olho mais atento de todos. Não por acaso, este é o país que mais condena pessoas à morte no mundo. O controle estrito da economia é sem dúvida uma das razões do enorme sucesso do crescimento chinês, mas também é um poderoso mecanismo para evitar que esse valioso bilhão de habitantes não escape das mãos. O poder na China distribui-se de forma nada simples. A cada cinco anos, os cerca de 3 mil delegados do Congresso Nacional do Povo reúnem-se para eleger as duas centenas de membros do Comitê Central. Este, por sua vez, encarrega-se de escolher quem fará parte do poderoso Politburo, reservado a apenas 24 pessoas. Dessas, nove formarão o Comitê Permanente e serão os reais detentores do poder na China. O líder deste grupinho é o presidente Hu Jintao. Ao contrário do que se pensa, o Partido Comunista não é o único do país. Há oito partidos menores, ditos “democráticos”, que representam entidades de classe, como empresários. Todos, obviamente, vigiados pelo partidão. Em alguns setores, o Estado chinês é implacável. A religião cresceu de forma assombrosa nos últimos anos, e o governo viu-se obrigado a tornar-se bem mais tolerante do que era durante a Revolução Cultural. O que não elimina sérias restrições. Apenas duas igrejas cristãs são permitidas, uma católica e uma protestante, desde que não haja laços com o Vaticano e que o partido nomeie os padres e pastores. Imprimir Bíblias ilegais dá cadeia, assim como freqüentar igrejas clandestinas nos subterrâneos do país. Contra o budismo e o taoísmo o controle é menor. Seria mesmo muito difícil, tal a fusão dessas fés com a cultura local. Já a imprensa é toda estatal. Os 750 mil jornalistas chineses trabalham patrulhados por censores que decidem até onde deve ir a notícia. Criticar o governo, ou promover intelectuais que o façam, é expressamente proibido. Assim como tratar de assuntos espinhosos como o Tibete, ocupado à força desde 1950. Com os livros e os filmes, acontece a mesma coisa. A internet é severamente fiscalizada. Embora a China tenha a segunda maior população online do planeta, milhares de cybercafés são fechados a cada ano. Nos sites de busca como Google e Yahoo há diversas palavras vetadas, como “direitos humanos”, “democracia”, “genocídio”, e “opressão”. “Liberdade”, ao que parece, ainda não está bloqueada. Quinto provérbio chinês: “A água sustenta o barco, mas também pode virá-lo”. Os chineses chamam sua terra de Zhongguo, literalmente “país do meio”, baseados na velha crença de que a China está no centro do mundo. Se depender da persistência de seus mandatários, essa crença pode se tornar universal. O Estado se propôs dois objetivos, previstos para serem alcançados nos próximos 50 anos: construir uma nova civilização material e construir uma nova civilização espiritual. Nada mais. As próximas duas décadas já estão meticulosamente planejadas. O governo chinês sabe que tem apenas 7% da superfície agrícola do mundo para alimentar um quinto da população global. Por isso os esforços a partir de agora serão concentrados em aumentar a produtividade da agricultura. Na indústria, a regra é produzir com qualidade. Chega de cópias mal feitas. A educação está passando por uma das transformações mais ambiciosas do planeta. Foram abertas 1300 universidades privadas nos últimos anos, ao passo em que 99% das crianças chinesas estão na escola. Mas tudo isso será possível apenas se a China aprender a domar os efeitos de um crescimento demasiado rápido. Um deles é a perda da obediência da população. Tanta abertura pode fazer a cabeça dos jovens chineses. Por enquanto o partido está conseguindo mantê-los na linha dando-lhes a chance de ganhar dinheiro. Não muito diferente do que acontece com outros países, que temem criticar os abusos aos direitos humanos e a corrupção de alguns governantes com medo de perder o imenso mercado consumidor. Tanta atenção à indústria causou um tremendo estrago no meio ambiente. Hoje 16 das 20 cidades mais poluídas do mundo estão na China, o segundo maior emissor de gases tóxicos depois dos Estados Unidos. É bom lembrar também da Represa de Três Gargantas. Sua inauguração em 2009 promete ser a da maior usina hidrelétrica do mundo, a um custo que inclui 75 bilhões de dólares (a maior exorbitância já gasta num projeto), o deslocamento de 2 milhões de pessoas e danos irreparáveis à natureza e a sítios arqueológicos. Por outro lado, o governo reservou 2 bilhões de dólares para o combate à poluição – e também para não arranhar sua reputação diante das potências européias, que adoram uma boa causa ecológica. Mesmo com tanta riqueza, a China ainda tem 150 milhões de miseráveis e abriga 18% dos pobres do mundo. Nas últimas décadas, 200 milhões de pessoas migraram do campo para a cidade, um dos maiores êxodos da História. Nos centros urbanos, essa massa sobrevive trabalhando na indústria a 100 dólares por mês, e ainda suporta o preconceito histórico por parte dos citadinos. O governo chinês quer que metade da população esteja na classe média até 2020. Isso mudará muita coisa. Quem sabe Mao Tsé-tung não se torna a divindade predileta dos xiaozi? Nesta terra que não cultiva os nexos do Ocidente, tudo é possível. Mesmo num espaço de tempo tão curto. É bom lembrar: estes mesmos chineses construíram a Grande Muralha e inventaram o papel, a bússola, a imprensa, a pólvora e a porcelana séculos antes que a América fosse descoberta. Sim, a China tem muita pressa. Mas tem também uma enorme paciência. Uma paciência de 5 mil anos. |