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7 mil milhas de dúvidas
Foi como romper um segundo cordão umbilical. No exato momento em que, à saída da baía de Miami, o rebocador largou as amarras que o prendiam aos catamarãs Atlas e Foca, cinco homens lançaram-se ao vazio do mundo, entregues à vontade dos ventos e dos mares. Para trás, ficavam as certezas da terra firme. À frente, aquela manhã de 24 de fevereiro de 1994 prometia 7 mil milhas de dúvidas. Era mais ou menos como a vida, só que restrita a uma lona de12 metros quadrados. Era a primeira vez que Beto Pandiani pisava num Hobie Cat 21 pés. Artimanhas do destino: cinco dias antes da partida, num churrasco de despedida, Betão fora atirado na piscina, fizera um talho na canela e tomara cinco pontos. Proibido de molhar-se com água salgada, não pôde testar os catamarãs, chegados havia 40 dias, novos em folha, da Califórnia. Era a primeira vez também que subia num barco sem cabine para uma travessia oceânica. Antes, seu tempo máximo de permanência no mar limitava-se a 48 horas. Agora, metia-se numa aventura 287 dias mais longa. Naquela manhã, os dois catamarãs apresentavam-se pesados, indóceis. Justo quando tinham adiante a obrigação inicial de vencer as 45 milhas que separavam Miami das ilhas de Bimini, nas Bahamas – uma fenda no mar por onde flui a Corrente do Golfo, autêntico rio oceânico que, se deixassem, poderia levá-los às costas do Canadá. Betão, no leme do Atlas, tratava de domesticar o veleiro com a ajuda de Gui von Schmidt. Marcus Sulzbacher, capitão do Foca, trazia, entre outras coisas, o equipamento de vídeo e mais dois marujos: Fernando de Almeida e o cinegrafista Pablo Nobel. De tão carregado, contudo, Foca não lhe obedecia. “O barco simplesmente não aceitou meus comandos”, recorda Marcus, que só pôde dar o bordo quando Pablo mudou-se para o Atlas. Chegando a Bimini, a primeira lição: numa viagem dessa envergadura, o excesso de carga pode ser o pior dos tripulantes. E lá se foram, de volta para casa, uns 40 quilos de equipamento. Incluindo um monitor de vídeo Sony, natimorto, encharcado de água marinha antes mesmo de estrear. Mais leves, mais mansos e mais rápidos, os dois catamarãs tomaram o rumo sudoeste, flutuando sobre o imenso banco de corais que se esconde sob o mar das Bahamas. Águas rasas e traiçoeiras, que camuflam profundidades inferiores a meio metro e desafiam a mais avançada cartografia náutica. Impróprias para veleiros de grande calado, mas perfeitas para o versátil Hobie Cat 21 – naquele momento um laborioso descobridor de ilhas que sequer constavam nos mapas. “Graças à pequena profundidade das bolinas, e à grande facilidade de manobra, nos atrevíamos a ir a lugares aonde ninguém ia”, diz Betão. Foram assim até Andros, a maior das ilhas bahamenses. De lá até Nassau, capital das Bahamas, assentada sobre a ilha de New Providence, fez-se necessário cruzar a Tongue of the Ocean, abismo de águas roxas, ondas largas e profundidades que esbarram nos 2 mil metros. Em seu diário, Marcus escreveu: “Obs.: o mar me impressionou!”. Nas Exuma Cays, série de ilhotas ao sul de Nassau, finalmente reencontrariam os preciosos bancos de corais, aqui elevados ao grau máximo de beleza. Eram quatro velejadores agora. Pablo havia ficado em Nassau. Quatro homens navegando ao largo de 200 quilômetros de paraíso terrenal, sempre a sotavento, na borda do Great Bahama Bank. A bombordo, as profundezas escuras do Atlântico; a boreste, uma piscina de cor turquesa em cujo leito os dois veleiros projetavam suas sombras. Nas ilhas de areia branca, desprovidas de vegetação e habitadas apenas por iguanas invocados, os marinheiros montavam acampamento. À noite, Atlas e Foca descansavam nas praias e tornavam-se o alicerce das barracas onde a turma entregava-se ao sono dos justos. Isto virou rotina não só nas Exumas como em todas as ilhas selvagens das Bahamas que surgiam a cada curva do mundo. Quando não jantavam comida liofilizada, os marinheiros refestelavam-se com os peixes que Nando, hábil pescador, conseguisse corricar em alto-mar. Em Plana Cays, sob a lua cheia, gozaram até de um sashimi de dourado. Em Long Island, armado de um hawaiian sling (espécie de estilingue para caça submarina), Nando mergulhou atrás de uma garoupa. Topou com um tubarão de 3 metros de comprimento. “Eu sonhava ter um encontro com um peixe desses, mas não embaixo d´água”, revela. E que encontro: enquanto Nando nadava devagarinho de volta para a praia, o bicho resolveu acompanhar. “Depois, começou a dar voltas em torno de mim, só ouvindo meu coração. Até que veio reto, na minha direção, parou a uns 3 metros de distância e desviou”. A partir daquele momento, banho no Caribe, só com água na canela. Cada ilha das Bahamas parecia guardar uma surpresa. Numa das Exumas, durante o jantar, a equipe foi surpreendida por um helicóptero que, rasante e ruidoso, sobrevoou suas cabeças lançando um facho de luz nada amistoso. Depois, souberam que a guarda-costeira americana costuma rastrear a área em busca de traficantes. Em Georgetown, capital de Exuma Cays e uma das tantas capitais da vela no Caribe, foram recebidos como celebridades durante uma regata que reunia mais de 400 veleiros e milhares de pessoas, todas de meia-idade: o canal 16 do radioamador já fizera o trabalho de espalhar a notícia desta estranha travessia. “Saímos de lá ao som de cornetas”, lembra Marcus. Quem certamente teve papel fundamental na disseminação da novidade foi o pequeno grupo de velejadores com quem a equipe da Entretrópicos havia cruzado alguns dias atrás, num lugar que Betão chamou de “baía dos desolados”. Eram todos homens de meia-idade em busca de um ancoradouro no Éden para curar suas feridas. Um ex-piloto da Delta Airlines cuja mulher havia falecido de câncer, um canadense que acabara de sair de um casamento de 15 anos e um californiano alcoólatra que há 20 anos vivia num veleiro com uma esposa cega. “Senti muita tristeza e muita angústia. Notei que eles precisavam de nós, de alguém para despejar o amor que estava aprisionado naqueles corações”, recorda Betão. Tanto que receberam nossos velejadores com um tremendo churrasco e despediram-se deles com um café da manhã, desses de hotel de luxo. “Apesar de termos passado só 15 horas juntos, parecíamos amigos de longa data”. Antes de seguirem viagem, um deles recomendou a Betão: ― Tenham cuidado. O mar mata os valentes mais rápido que os covardes. (texto completo no livro) |