Série de reportagens publicadas no site da National Geographic Brasil sobre comunidades produtores de alimentos nativos, ameaçados de extinção. Fotos aqui.
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Guaraná de origem
Guaraná em tempo de colheita é como um olho que se abre. Ou muitos olhos, tantos quantos forem os frutos a madurar no pé. Começa por volta de novembro, quando o céu descarrega as primeiras chuvas do inverno amazônico e os cachos, metidos nas florestas do Médio Amazonas, revelam a semente preta que a casca do fruto até então escondeu. “Quando abre, é que tá no ponto de colher”, explica Idelcides Bastos, tuxaua (ou cacique) substituto da aldeia de Guaranatuba, uma das principais produtoras de guaraná na terra dos índios Sateré-Mawé. Então, por cerca de dois meses, ele e a família navegarão o igarapé que conduz aos guaranazais, onde gastarão um par de horas arrancando os olhos que já se abriram. Depois, com os cestos carregados, voltarão à aldeia para dar início ao longo processo de transformação dos frutos em pó. Será assim todos os dias durante a safra, tal como tem sido na aldeia de Guaranatuba há pelo menos 350 anos. Só que agora o guaraná de Idelcides vai quase todo para a Europa. O dele e de outros milhares de índios, moradores das mais de cem aldeias abancadas à beira dos rios Andirá e Marau, numa área entre os municípios amazonenses de Parintins, Maués e Barreirinha. Oito toneladas de guaraná, para ser exato, saem hoje das terras Sateré-Mawé com destino aos mercados europeus. No rótulo, o selo de “guaraná nativo”. Justo: a região onde vivem os Sateré coincide com a zona onde o guaraná cresce em estado selvagem, na forma de um cipó. Coube a esses índios, no caso, o feito inédito de domesticar a planta (no chão, ela vira um arbusto) e transformá-la em alimento – uma descoberta que remonta a muitíssimas gerações, num ponto remoto do tempo em que a história dos Sateré-Mawé se confunde com sua própria mitologia. Corre uma lenda entre eles de que o guaraná teria brotado a partir do olho enterrado de uma criança morta – daí a forma do fruto. Dessa mesma criança, ressuscitada, teria nascido também o primeiro Sateré-Mawé. Consideram-se, portanto, “filhos do guaraná”. Ou seja, descendentes diretos da planta que revelaram para o mundo. Guaraná, por sinal, é palavra de origem Sateré: waraná, eles o chamam. E registros de seu uso já constam no primeiro relato que se tem desses índios, um documento de 1669 escrito pelo missionário luxemburguês João Filipe Bettendorff: “Têm os Andirazes em seus matos uma frutinha a qual secam e depois pisam, fazendo delas umas bolas que estimam como os brancos o seu ouro. (...) Desfeitas com uma pedrinha em cuia d´água, dão tanta força como bebida que, indo a caça um dia até outro, não sentem fome, além do que tiram febres, cãibras e dores de cabeça”. Ou seja, no momento do primeiro contato com o homem branco, os Sateré-Mawé não só já cultivavam o guaraná como tinham pleno conhecimento de seus efeitos estimulantes – convém registrar que a semente pode concentrar até cinco vezes mais cafeína que o grão de café. Em pouco tempo, o fruto do guaranazeiro tornou-se a mais valiosa mercadoria das terras Sateré. Relatos de viajantes no século 19 já falam de um intenso comércio que descia o rio Madeira, levando guaraná para lugares tão distantes quanto a Bolívia. Diante disso, não tardou para que os caboclos de Maués seguissem o exemplo dos índios, plantando eles mesmos seus próprios guaranazais. Depois que se descobriu a fórmula do refrigerante, no começo do século 20, a produção aumentou de tal forma que Maués foi, durante décadas, o lugar de origem de praticamente todo o guaraná consumido no país. Isso só mudou nos anos 90, quando lavouras mais produtivas e resistentes na Bahia tomaram a dianteira. Os Sateré-Mawé, com sua produção modesta e artesanal, claro, ficaram de fora do jogo comercial. A tal ponto que, em 1993, quase não havia mais guaraná na reserva indígena, a não ser para um escasso consumo local. Foi quando Obadias Garcia, então tuxaua da aldeia de Vila União, percebeu que o guaraná nativo corria o sério risco de sumir do nosso mapa, e com ele a matriz genética da espécie original. Naquele mesmo ano, ele criou um consórcio de produtores indígenas, semente de um projeto pioneiro de etnodesenvolvimento voltado não só para a recuperação dos guaranazais, mas também da identidade e da auto-estima dos Sateré. “A intenção era resgatar tanto o valor comercial quanto o valor cultural do guaraná”, explica Sérgio, o filho mais velho de Obadias. Na primeira safra, foram comercializadas apenas 20 quilos de um único produtor. Hoje as 8 toneladas atuais de guaraná vêm dos quintais de mais de 300 produtores cadastrados, todos moradores da Terra Indígena Andirá-Marau, território original dos Sateré. O destino: 22 países da Europa. Agora Idelcides tem 150 pés de guaraná no fundo do igarapé Guaranatuba, dos quais vende, todo ano, 90 quilos – quase um terço da produção total da aldeia. Não é tanto quanto era no passado, uma vez que o guaraná Sateré, conforme prescreve o projeto, há de agora ser orgânico. Dona Iracy Batista, a moradora mais velha da aldeia, lembra com gosto do tempo em que os guaranazais preenchiam as margens do Rio Andirá, numa época em que se plantava feito roça, pondo-se a mata abaixo. “Antigamente dava bonito, você gostava de ver”. Hoje é diferente: a certificadora exige o sistema de agrofloresta, ou seja, plantam-se os pés no meio da mata, intercalados com outras espécies nativas – algumas de valor comercial, como o açaí, o pau-rosa e a andiroba. Não rende tanto como se fosse numa monocultura, mas se preserva o corredor ecológico e se garante o sombreamento, essencial para que os frutos cresçam bonitos e saborosos. A produtividade aumenta se o guaranazeiro crescer como acontece na aldeia da Vila União, com os galhos suspensos sobre um jirau – uma armação de madeira que evita o contato dos frutos com o chão úmido. Aí, há que se recrutar os membros mais jovens da família, com disposição suficiente para trepar os galhos e buscar os frutos que se abriram pendurados no alto, a uns cinco metros de altura. Aliás, a produção do guaraná nas terras Sateré é uma atividade que envolve a família inteira, da colheita à torra. Não só a garotada, mas os mais velhos também, para dar conta do tanto de frutos que se abrem diariamente durante a safra. “Quando tá na força, todo dia tira”, diz Idelcides. “E tem que tirar logo. Não pode deixar cair, senão perde”. Depois da colheita, a família se junta para descascar o guaraná. Os frutos que antes enchiam os cestos agora são espalhados no chão, onde esperam, um a um, que se lhes arranque com a mão a casca vermelha. Sobram a semente e a polpa branca que a envolve, que passam um dia de molho na água para se separarem uma da outra. Então, vem a torra: as sementes, agora sem polpa, chegam ainda úmidas no tacho de barro, e ali ficarão por mais um dia tostando no fogo baixo. Alguém há de ficar ali, colher de pau na mão, remexendo as sementes quase que o tempo todo, para que torrem por igual. “Mexe mexe igual farinha”, explica Lenilda, também moradora de Guaranatuba. Quando começam a estourar, é sinal que estão no ponto. Enquanto isso, o resto da família já está de volta aos guaranazais, colhendo os novos frutos que se abriram. Do tacho, o guaraná torrado vai para dentro de um saco de juta, que será armazenado no fumeiro, para conservação. O fumeiro, entre os Sateré-Mawé, é uma pequena prateleira feita com madeira aromática – geralmente murici – que fica pendurada sobre o fogo da cozinha, recebendo lentamente a fumaça que sobe durante a feitura da comida. Sérgio Garcia, o filho de Obadias, explica que a qualidade da madeira faz toda a diferença: “É ela que dá sabor ao guaraná”. De quebra, defende seu produto, dizendo que o guaraná dos caboclos de Maués, que seca ao sol ao invés de no fumeiro, tem gosto de “pau podre”. Ali, enquanto defuma, o guaraná dos Sateré aguarda seu destino. Uma parte irá para Parintins, de onde viajará até Manaus e, dali, para a Europa. O resto ficará lá, entre os índios, esperando o momento certo de virar çapó – o guaraná em forma de bebida. É como os Sateré-Mawé consomem tradicionalmente o fruto mais valioso de suas terras: dissolvendo o guaraná torrado e defumado numa cuia cheia de água, o que resulta num líquido barrento e amargo que em nada lembra o gosto do refrigerante. Não que seja desagradável – só não é familiar. Entre eles, porém, o çapó é bebida diária, consumida largamente por adultos e crianças ao longo do dia, no geral de manhã, à tarde ou quando houver alguma reunião na aldeia. Pode-se preparar o çapó com o guaraná moído na hora, mas não é como manda a tradição. O certo é usar o waraná ok, um bastão moldado com as sementes piladas que passa meses curando no fumeiro. Fazê-lo exige tempo e técnica, e para isso existe uma figura entre os Sateré conhecimento como “padeiro” (os índios também chamam o bastão de “pão”). Nas barrancas do Rio Andirá, o padeiro mais famoso é Afonso Miquiles, tuxaua da aldeia Vida Feliz e herdeiro de ofício antigo, aprendido com o avô. Por dia, ele fabrica não mais que 2 quilos de bastões, que podem ser de três tamanhos: um quilo, meio quilo ou 250 gramas. Mais do que isso é difícil, pois, como explica Afonso, “tem que ter muita energia para pilar o guaraná”. Só a mão de pilão, feita com pau-brasil, pesa uns 20 quilos – e a destreza no manejo é fundamental para se alcançar o ponto que dá firmeza ao bastão. “Tem que estar bem ligado pra não partir”, ele diz. Para isso, é preciso que o guaraná primeiro seja moído no pilão até tornar-se um pó bem fino, que depois será misturado à água para dar liga. Quando atinge a consistência ideal, um tanto pastosa, Afonso leva a massa para enrolar na mesa. Dali, o bastão segue direto para o fumeiro, envolto numa folha de bananeira para não grudar, onde passará ao menos três meses ganhando cor, sabor e rigidez. Quando bem conservado, pode durar até dois anos. Para preparar o çapó, os Sateré-Mawé ralam o bastão numa pedra áspera de basalto, tirada do rio, até que o guaraná se misture à água. Antigamente era comum que se usasse uma língua de seca de pirarucu no lugar da pedra, mas hoje esse costume está mais restrito às comunidades caboclas de Maués. Entre os índios, quem rala é sempre a mulher, o que reforça o caráter social do çapó – e, por extensão, do próprio guaraná. Nas aldeias Sateré, nenhuma assembleia ou reunião começa sem uma rodada de çapó. A esposa prepara, o anfitrião serve e todos tomam, em sinal de respeito. E bebem sempre em rodadas duplas. “Se tomou um, tem que tomar dois. Se tomou três, tem que tomar quatro”, explica Afonso. O consumo ritualizado do çapó, explica Sérgio Garcia, está relacionado aos poderes quase mágicos que os Sateré-Mawé atribuem ao guaraná – é nele que se encerra o wará, o princípio do conhecimento. “Tomando guaraná, você pede sabedoria para tudo correr bem na reunião”, ele conta. “E, se você tomar com fé, seu pedido vai se realizar”. Ao mesmo tempo, o çapó também é a bebida usada em situações de resguardo, como o período de menstruação, gravidez ou pós-parto, no caso das mulheres, ou durante a Festa da Tocandeira, entre os homens. Aliás, esse importante ritual de iniciação dos meninos Sateré – que recebem a ferroada de cerca de trezentas formigas venenosas – coincide precisamente com a época da colheita do guaraná. É, portanto, o momento de maior intensidade na vida social dos índios. Passado o tempo da colheita, é hora de vender o guaraná que não virou çapó. Chega a vez de Bené, capitão do barco Juruena, subir os rios Andirá e Marau levando os membros do consórcio responsáveis pela compra das sementes. Quase cem aldeias são visitadas entre janeiro e fevereiro, e cada uma já reconhece o Juruena pelo motor. “Quando o barco chega, ele já estão na praia esperando”, conta Bené. O valor pago aos índios pelo quilo de guaraná varia conforme a demanda, mas no geral fica entre 30 e 40 reais, o que já é bem acima dos 2 reais que se pagava em 1993, quando do início do projeto de etnodesenvolvimento. Segundo Sérgio, isso ajudou inclusive a elevar o valor de mercado do guaraná não-orgânico produzido pelos caboclos de Maués, que hoje recebem por volta de 20 reais o quilo. Carregado de sementes de guaraná, o Juruena volta a Parintins, distante 8 horas de navegação da aldeia mais próxima. Ali fica a sede do Consórcio de Produtores Sateré-Mawé, onde as 8 toneladas anuais de grãos são transformadas em 6 toneladas de pó de guaraná. No lugar do pilão, eles lá têm duas máquinas de beneficiamento: uma para tirar o casquilho – a película quebradiça que envolve a semente – e outra para moer o guaraná. Esse pó seguirá para Manaus e, dali, para duas distribuidoras na Europa, uma na França (Guayapi) e outra na Itália (Altromercato). As empresas, por sua vez, revenderão o guaraná para todo o continente nas mais diversas formas: não só como pó energético, mas também como ingrediente exótico de chocolates, cervejas e gomas de mascar. Esse seria o movimento natural num ano sem crise financeira. Na safra de 2011, entretanto, os europeus deixaram de comprar 3 toneladas de guaraná Sateré, que os índios foram obrigados a vender, por um valor mais baixo do que haviam comprado, à Coca-Cola, fabricante do refrigerante Kuat. Por conta disso, eles agora querem abrir uma frente inédita de mercado no Brasil, o que inclui não só o guaraná, mas também a comercialização de outros produtos originários do terroir Sateré. Entre eles, os óleos de andiroba e copaíba e o néctar de abelhas nativas, um mel líquido produzido com as flores do guaraná. Por trás de tudo isso, porém, o que está em jogo são planos ainda mais ambiciosos, movidos por um desejo legítimo de se reinventar como povo. “O consumidor precisa saber que ele não está comprando só um produto, mas um projeto político”, afirma Sérgio. Para ele, o mais importante do Projeto Waraná é a oportunidade dada aos Sateré-Mawé de fixar-se na sua terra nativa – ao invés de migrar para os centros urbanos, como acontece em inúmeras tribos pelo país – e ainda gerar renda. Na Terra Indígena Andirá-Marau, 80% da receita ainda vem de fontes governamentais, seja pela geração de emprego, seja por programas de assistência social. Ampliar o mercado do guaraná seria, assim, uma maneira de diminuir a dependência do Estado e, ao mesmo tempo, abrir espaço para a construção de uma identidade autônoma. Sérgio é quem resume: “Este é nosso sonho: construir nosso próprio governo, nossa educação, nossa política”. Um grande passo foi dado com a criação da Universidade Livre do Wará, que pode ser entendido como um centro de estudos das tradições Sateré-Mawé. Por enquanto ele é virtual: dezenas de documentos sobre a história e a cultura desses índios foram disponibilizados na internet, para consulta gratuita. Em 2013, uma nova etapa começa com a formação da primeira turma de professores. Ela será criada a partir da seleção de um grupo de universitários de Parintins, que receberá, de velhos sábios da tribo, ensinamentos sobre a cultura Sateré, da língua ao uso de ervas medicinais. No que vai dar tudo isso, ninguém sabe, nem mesmo Obadias Garcia, o idealizador do projeto. Por enquanto, a única certeza é a vontade obstinada de recuperar a identidade, valendo-se do guaraná como ponto de partida. Como diz Sérgio, “brasileiro acha que índio é preguiçoso. A gente quer mostrar o contrário”. Já estão mostrando. |