Reportagem publicada na revista Florense em dezembro de 2012.
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Divino êxtase
Sexo grupal, masturbação, felação, sodomia, bestialismo, homossexualidade: tem de tudo um pouco em Khajuraho. Tudo aquilo que os bons costumes recomendam esconder aparece aqui a olhos vistos, estampado do lado de fora dos templos como uma grande bacanal petrificada, para quem quiser ver. E para quem não quiser também. Ninguém sabe ao certo porque essas esculturas estão aqui, neste complexo de templos a 600 quilômetros de Nova Délhi, preenchendo de volúpia escandalizante a fachada de edifícios supostamente religiosos. Que há algo de sagrado nisso, não tenha dúvida. O quê, exatamente, é o que os arqueólogos vêm tratando de descobrir. Ao que parece, a resposta pode estar não em Khajuraho, mas em textos hinduístas que nos contam um pouco sobre o sexo na antiga Índia. E acredite: ele vai muito além do Kama Sutra. Esta história começa em algum lugar do século 10, quando os Chandelas, uma dinastia de reis hindus, começaram a erguer o que deve ter sido sua capital religiosa, num ponto isolado ao sul do Rio Ganges. Conta-se que, em cem anos, eles construíram 85 templos, espalhados por uma área de 12 quilômetros quadrados. O porquê de ser ali é outra coisa que não se sabe, mas é provável que tenha a ver com a abundância de água e de rochas, necessárias para a construção dos edifícios, e também com a dificuldade de acesso, pois Khajuraho está cercada de montanhas. Tudo indica que os Chandelas queriam proteger seus templos. Ou, quem sabe, escondê-los de alguém. Khajuraho só foi descoberta pelos ingleses no século 19, quando muitos templos já estavam em ruínas, carcomidos pela ação do tempo e cobertos pela vegetação. Dos supostos 85 edifícios orignais, apenas 22 haviam ficado de pé. Hoje restaurados, eles compõem uma espécie de parque público, com direito a gramado e canteiros de flores, que recebe turistas do mundo todo. Do povo que lá viveu não sobrou quase nada, exceto um simpático vilarejo nas redondezas, de 20 mil habitantes, cuja relação com o complexo se limita a fornecer mão de obra às dezenas de hotéis que proliferaram nas franjas do parque. As figuras eróticas, claro, constituem o grande fator de atração, mas estão longe de ser o elemento predominante em Khajuraho. Poucos são os templos, aliás, decorados com imagens dessa natureza. O mais comum são as representações de deuses, deusas, ninfas, espíritos celestiais, animais mitológicos e outras divindades do populoso panteão hindu. Mesmo as figuras humanas são escassas. Mas veja que curioso: salvo uma única escultura de um velho, todos os homens e mulheres de Khajuraho aparecem em pleno exercício de seu vigor juvenil. Há imagens de gente lutando, caçando, cultivando a terra, domando elefantes, erguendo casas, dançando e, claro, fazendo sexo. Um templo sozinho, o maior deles, tem nada menos que 646 esculturas na parede externa e mais 226 no interior. Kandariya Mahadeva não só é a melhor síntese de Khajuraho como também um dos mais refinados exemplos da arquitetura medieval indiana, inclusive no que diz respeito à construção. Não há uso de argamassa – todos os blocos de pedra são encaixados entre si e sustentados pela força da gravidade. E haja força para sustentar 84 torres de diversos tamanhos, enfileiradas tais como as montanhas do Himalaia. A comparação é proposital: para os hindus, a cordilheira é o lugar onde moram os deuses. Shiva em particular vive no monte Kailash, aqui representado pela torre principal do templo, com 30 metros de altura. Trata-se, pois, um templo dedicado a Shiva, como outros tantos em Khajuraho. Sabemos disso porque dentro há um lingam, imagem de pedra que representa o deus hindu da destruição. E o lingam é um falo. Estilizado, mas é. Isso porque a energia destruidora de Shiva é, na verdade, a de regeneração, ou de restabelecimento de uma nova ordem por meio do poder criador presente no órgão masculino. Não por acaso, nos templos hinduístas, esse deus costuma aparecer acompanhado de Parvati, sua esposa, deusa associada à fertilidade. Certas correntes hindus, inclusive, prescrevem rituais de adoração à vulva. Reza a tradição que foi Nandi, o touro sagrado que serve de montaria a Shiva, quem transmitiu aos homens os segredos do prazer erótico, aprendidos depois de escutar as relações de seu amo com a esposa Parvati. Esses ensinamentos foram compilados a partir do século 8 a.C., dando origem a uma série de textos que atravessaram os milênios, cujo tema em comum era sempre o mesmo: a arte do sexo. O mais famoso desses textos é o Kama Sutra, escrito há cerca de 2 mil anos – que, ao contrário do que se imagina, é muito mais do que um manual de posições estapafúrdias. Trata-se de uma verdadeira enciclopédia sobre o amor erótico, com dicas que vão desde a escolha de uma esposa até maneiras de tornar-se mais atraente. Como se vê, o sexo na velha Índia estava longe de ser um tabu. Pelo contrário: era abertamente encorajado, inclusive pelos textos sagrados. Para os antigos hinduístas, uma vida que não fosse preenchida pelo estímulo dos prazeres sensoriais, incluindo o sexo, era uma vida sem sentido. Essa ideia ganhou corpo sobretudo com o tantrismo, doutrina surgida no século 5 que pregava a total integração entre corpo e espírito. Seus praticantes partiam do seguinte conceito: se o desejo move o corpo, e o corpo está conectado ao espírito, então também o espírito é movido pelo desejo. Seguindo essa lógica, os tantristas entendiam o corpo como um instrumento para se acessar os domínios da espiritualidade. E o ato sexual, um caminho sem atalhos. Para o tantrismo, a fusão entre os corpos nada mais é senão uma ferramenta para se alcançar o êxtase que nos liberta do ego e do desapego. Um exercício de fusão com os cosmos, digamos. E, portanto, ato sagrado que nos aproxima da divindade. Para potencializar essa energia, os tantristas recomendavam vivamente que o ato sexual fosse praticado por meio de posturas emprestadas da ioga. Isso explica porque, em diversas imagens de Khajuraho, as pessoas aparecem fazendo sexo em posições um tanto acrobáticas, na beira do improvável. Houve quem sugerisse que faziam menção ao Kama Sutra, mas alguns pesquisadores sustentam que elas dizem respeito ao sexo tântrico. Tudo isso nos leva a crer que os Chandelas talvez tivessem uma visão sobre o sexo não só liberal, como também próxima do sagrado, o que justifica sua presença nos templos de Khajuraho. É uma visão também muito refinada, convém dizer, mesmo se comparada com os padrões atuais, de suposta liberdade sexual. Quando comparada com a Índia atual, então, nem se fala: chega até a espantar que o povo que ergueu Khajuraho seja o mesmo que hoje se casa por meio de arranjos matrimoniais, não discute sexo nem na mesa do bar e evita se beijar em público. Tudo isso, embora pareça arcaico, é novo: são os efeitos de cem anos de domínio britânico, incluída a moralidade vitoriana que lhe é habitual, sobre a sociedade indiana. Vale, aqui, o velho adágio: a pornografia está nos olhos de quem a vê. |