Reportagem publicada na revista Gosto em julho de 2010
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Londres gourmet
De todas as inúmeras piadas que já se fizeram a respeito da culinária inglesa, talvez a mais eloquente seja a do romancista e dramaturgo W. Somerset Maugham – ele próprio britânico, aliás: “Para se comer bem na Inglaterra, basta tomar café da manhã três vezes ao dia”. De fato, com exceção talvez do chá, dos muffins e do rosbife, o único patrimônio gastronômico da terra de Shakespeare que jamais deixou de gozar certo respeito internacional é o afamado desjejum composto de ovos, bacon, salsichas e cogumelos. Todo o resto, convenhamos, amarga uma péssima reputação. E verdade seja dita: não raro comprovada por todos aqueles que têm visitado Londres nas últimas cinco décadas. O que dizer de uma cozinha cujo ícone é o peixe frito com batatas? Até bem pouco tempo atrás, nem mesmo os ingleses faziam muita questão de defender sua produção culinária. Quem quer que lhes pedisse alguma indicação de boa comida na capital britânica, diziam que simplesmente fosse a algum restaurante paquistanês, indiano ou vietnamita. God save the immigrants. Bem, isso mudou. Se Londres já estava se tornando um dos melhores lugares do mundo para experimentar comida de todos os cantos do mundo, agora até cozinha cem por cento inglesa da mais alta qualidade não se demora a encontrar. Na soma, tudo parece ter melhorado consideravelmente. Prova disso é a última edição do Guia Michelin, que outorgou o maior número de estrelas das últimas três décadas: são 140 espalhadas pelas ilhas britânicas. Só Londres abriga 59 delas, distribuídas em 48 restaurantes. É verdade que boa parte dessas estrelas foram dadas a restaurantes franceses (afinal, Michelin é um guia francês), mas já começam a brilhar com luz própria lugares como o St. John de Fergus Henderson ou as duas casas de Gary Rhodes. Além disso, nunca houve tantos chefs ingleses adquirindo o status de celebridade. Inclua-se aí nomes como Heston Blumenthal, Gordon Ramsay, Jamie Oliver e Nigella Lawson. O que quer tenha acontecido à culinária inglesa nas últimas décadas, isto já é parte do passado. Londres acordou. E tem fome. Contrariando todas as previsões, está bem perto de virar uma das grandes capitais gastronômicas do mundo. Se é que já não virou. Cabe lembrar que essa má fama toda é um fenômeno relativamente recente. Na Idade Média, por exemplo, a culinária inglesa gozava de excelente reputação em toda a Europa. Em certo momento, chegou a ser tão sofisticada quanto a cozinha francesa. Como esquecer dos banquetes de Henrique VIII, com seus bifes de golfinho, suas tortas de cisne e seus pavões assados? No século 15, os cozinheiros da realeza britânica estiveram entre os grandes descobridores de ingredientes, receitas, técnicas e temperos até então desconhecidos na Europa. A decadência mesmo veio com a Segunda Guerra Mundial, quando os ingleses, habituados a importar quase tudo o que consumiam, se viram obrigados a enfrentar um racionamento que durou até meados dos anos 1950. Por quase uma década, cada cidadão teve que se contentar com limites semanais de itens básicos como ovos, queijo, presunto, açúcar e manteiga. Entre os poucos produtos que não constaram no racionamento estavam o peixe e a batata. Daí a popularidade imorredoura do fish and chips. Acostumados com a escassez, os ingleses desaprenderam a comer. E toda uma tradição gastronômica centenária viu-se reduzida a pratos de uma desconcertante sobriedade, onde não raro o único elemento de destaque eram as carnes, “assadas até virarem couro”, nas palavras da escritora inglesa Virginia Woolf. Os súditos da rainha Elizabeth II pareciam ter perdido o paladar. “Nos anos 60 e 70, as pessoas simplesmente não se importavam em comer bem. Quase nem havia restaurantes”, diz Adrian Bevan, um jornalista especializado em gastronomia. As coisas só começaram a mudar nos últimos anos do século, quando a economia se recuperou, o padrão de vida aumentou e os ingleses começaram a viajar mais para o exterior. Lá fora, descobriram novos sabores, novos parâmetros. E voltaram com um paladar reconstituído, mais exigente, desejoso de experiências gastronômicas que as gerações anteriores não viveram. Foi nessa mesma época que restaurantes italianos, japoneses, indianos e tailandeses proliferaram pelas ruas de Londres, dispostos a satisfazer essa massa de novos gourmands. Na cola do sucesso, uma nova geração de chefs surgiu com seus livros e programas de televisão, ensinando a população não só a comer, mas também a cozinhar. “Estamos atingindo um novo nível”, diz o chef Tom Aikens, dono de uma estrela Michelin em seu restaurante homônimo no bairro de Chelsea. “O conhecimento sobre comida aumentou muito. As pessoas agora estão mais bem informadas. Sabem o que querem comer”. Ninguém duvida que já há uma revolução em curso. E ela está ocorrendo em todos os níveis, inclusive dentro da casa das pessoas. A última moda em Londres são os chamados supper clubs (ou “clubes da janta”), restaurantes de espírito underground que têm surgido dentro das próprias moradias londrinas. É uma espécie de confraria: regularmente, algum cozinheiro amador (ou nem tanto) abre as portas de sua casa para receber um pequeno grupo de estranhos, dispostos a provar seus experimentos culinários. Como se trata de residências particulares, o endereço só é revelado até que se faça a reserva. Dependendo da reputação do supper club, a espera por uma mesa pode levar meses. Um dos mais concorridos é o Saltoun (www.eatwithyoureyes.net), aberto pelo sul-africano Arno Maasdorp há um ano. Duas vezes por semana, ele arrasta os sofás da sala e recebe 16 pessoas em seu pequeno apartamento no bairro de Brixton. A refeição custa 30 libras e cada cliente deve levar uma garrafa de vinho. O resto é com Arno, que de amador nada tem. O homem cozinha tão bem que seu supper club acaba de figurar em quarto lugar numa lista mundial das “melhores novas experiências gastronômicas”, elaborada pela revista Food and Wine. “Eu poderia abrir um restaurante, mas não é o que quero. Gosto de fazer tudo eu mesmo, e isto seria impossível num lugar maior. Este é meu restaurante”, diz Arno. De fato, a maioria desses chefs ocasionais escolhem abrir um supper club pelo simples prazer de cozinhar com a máxima liberdade, sem a pressão de estrelas Michelin ou qualquer coisa do tipo. Tanto é que evitam demasiada propaganda. A fama de um restaurante underground se faz no boca-a-boca, não raro via sites de relacionamento como Twitter ou Facebook. O clima é tão casual que, no fim, quem era estranho vira amigo. “Tenho amigos até hoje que conheci em supper clubs”, diz o brasileiro Luiz Hara, autor de um dos blogs gastronômicos mais influentes de Londres, The London Foodie (www.thelondonfoodie.co.uk), e grande divulgador dos supper clubs. Nem todos os cozinheiros, claro, se satisfazem com a sala de sua casa. Para alguns, essas confrarias são apenas um território seguro para testar receitas antes de levá-las ao grande público. O português Nuno Mendes, por exemplo, manteve durante dois anos o The Loft Project (www.theloftproject.co.uk) antes de abrir no East End o restaurante Viajante (www.viajante.co.uk), onde vem servindo uma das cozinhas mais criativas da capital britânica. Discípulo de Ferran Adrià, Nuno dilui fronteiras, mistura sabores de todos os lugares por onde passou (Portugal, Inglaterra, Ásia) e reinventa clássicos britânicos como o sacrossanto café da manhã, aquele com ovos e bacon. Seu supper club continua na ativa, mas agora recebendo chefs convidados. Apesar de o Viajante viver lotado (mais pela novidade, talvez), não são as alquimias culinárias herdadas da vanguarda espanhola que estão fazendo a cabeça dos londrinos. É comida inglesa à moda antiga. Nada há nada que faça mais sucesso hoje em Londres que as receitas e os ingredientes made in England. Veja Heston Blumenthal: depois de conduzir a alta gastronomia inglesa ao século 21 em seu The Fat Duck, em Bray, nos arredores de Londres, ele promete abrir até o fim do ano um restaurante dedicado à cozinha histórica britânica. O nome do lugar será Caterer e estará dentro do hotel Mandarin Oriental, ao lado da nova casa de Daniel Boulud. Parece haver um esforço coletivo em relembrar velhas receitas das avós, anteriores ao tempo dos racionamentos, e recuperar ingredientes perdidos, esquecidos ou aniquilados pela globalização. Há um revival, por exemplo, na produção de queijos artesanais. Os ingleses estão descobrindo, entre outras coisas, que as ilhas britânicas abrigam uma das maiores variedades da Europa, muito além do stilton e do cheddar. “São mais de 500 tipos de queijo”, diz Rhuaridh Buchanan, gerente da loja Paxton & Whitfield (www.paxtonandwhitfield.co.uk), uma das mais tradicionais da capital, na ativa desde 1797. Só de queijos locais, eles vendem mais de 70 tipos. “Depois de muitos anos, os ingleses estão voltando a fazer queijos. E se há muita gente interessada em fazer é porque há muita gente interessada em comprar”, explica Buchanan. A lei da oferta e da procura também se aplica às carnes. Velhas raças antes condenadas à extinção como o gado Dexter, o cordeiro Southdown e o porco Gloucester Old Spot estão voltando a ser criadas. E muitas delas à moda antiga, sem currais, pastando em planícies selvagens. O mesmo vem ocorrendo com os cortes: voltaram ao cardápio dos restaurantes a língua do boi, a bochecha do porco e uma parte conhecida como “jacob´s ladder”, semelhante ao nosso acém. Neste ponto, a grande autoridade em Londres é Fergus Henderson, chef do St. John, uma estrela no Guia Michelin. Num velho defumadouro de carnes e peixes, vizinho ao mercado de Smithfield, ele serve uma cozinha que chama de “nose to tail” – do focinho ao rabo. Todas aquelas partes descartadas do animal ganham lugar de destaque em seu menu: coração de boi, rins de cervo, miúdos de porco, língua de cordeiro. Um lugar, enfim, proibido para vegetarianos. Não espere, contudo, nada de muito sofisticado no St. John. Tanto lugar quanto pratos são de uma incrível simplicidade. O que tem tudo a ver não só com essa nova onda em Londres como com a própria culinária britânica. “Nossa cozinha é essencial”, explica o jornalista Adrian Bevan. “Nada de reduções ou molhos complicados. Todas as nossas receitas buscam acentuar o sabor dos produtos, ao invés de disfarçá-los.” Isto só funciona, claro, quando o produto é bom. O que durante muitos anos foi o mais difícil de se obter. Tudo que a gastronomia inglesa precisava, afinal, era dos ingredientes certos. “Quando eu vim morar aqui há 18 anos, os tomates tinham gosto de água”, lembra o brasileiro Luiz Hara. Agora, ele explica, os ingleses parecem ter descoberto o real sabor das coisas. “Ninguém mais quer comprar o que não seja orgânico ou que não saiba de onde veio”, diz. A procedência é fundamental. Já não se compram mais ruibarbos, aspargos e ostras, e sim ruibarbos de Essex, aspargos de Worcestershire e ostras de Suffolk. Tudo em Londres hoje vem com nome e sobrenome. Nos supermercados, até a foto dos produtores vem estampada nas embalagens. A valorização do ingrediente se aplica também à sazonalidade. Chega de comer ruibarbos em setembro ou maçãs em janeiro. Nada congelado, tudo no ápice de seu sabor e frescor. No Hix, um dos restaurantes mais concorridos do Soho, o chef Mark Hix faz questão não só de reinventar o cardápio a cada estação como também o muda duas vezes por dia, de acordo com as ofertas do momento. E o lugar, tão moderno quanto parece ser, nada mais é do que uma celebração da pura e simples cozinha inglesa. Especial sucesso têm feito os mercados de rua, em particular os farmers´ markets. São feiras que floresceram nos últimos anos em diversos bairros da capital, onde pequenos produtores das redondezas vendem seus ingredientes. Não vêm de muito longe: 150 quilômetros, no máximo. E isto é muito importante para esta nova geração de gourmands londrinos. Não por acaso, cada vez mais cidadãos estão trocando os supermercados por essas feiras. Há 18 delas na cidade (veja a lista completa aqui: www.lfm.org.uk). Uma das melhores é a de Marylebone, que atrai gente de todos os cantos nas manhã de domingo. Também o Borough Market (www.boroughmarket.co.uk) nunca esteve tão na moda. Este mercado de 800 anos de idade, situado aos pés da Torre de Londres, virou o destino oficial de chefs televisivos (Jamie Oliver vem tomar café da manhã aqui) e meca de gourmands de toda a Inglaterra. Trata-se de um dos maiores mercados de rua da Europa, onde mais de noventa barracas vendem milhares de produtos não só de todo o continente como de todo o mundo – de cacau caribenho a carne de zebra africana. E, claro, o que há de melhor em produtos britânicos. Boa parte deles podem ser degustados ali mesmo: basta subir as escadas que levam ao mezanino onde ficam o restaurante Roast. Ele ainda não tem estrelas Michelin, mas já figura em todas as listas dos top restaurants londrinos. Seu dono é o magnata bengalês Iqbal Wahhab, nada menos que o conselheiro alimentar do príncipe Charles. Na cozinha, Lawrence Keogh, ex-chef do Ritz, prepara pratos clássicos do arquipélago britânico como torta de rim, ovos à escocesa e filé de Welsh Black (tenríssima carne de gado galês, destaque do cardápio) com ingredientes comprados no próprio Borough Market. A despeito do quanto a culinária inglesa possa estar na moda, Londres continua sendo um dos melhores lugares do planeta para se encontrar comida de todos os cantos do globo. “Come-se melhor comida tailandesa aqui do que na Tailândia”, diz Luiz Hara. De fato, qualidade e variedade é o que não falta. São mais de 60 culturas gastronômicas presentes na capital britânica, da cozinha afegã (como o restaurante Kabul, no oeste da cidade) à zambiana (como o africano Fredor, no leste). Figura de destaque nesse departamento é o chinês Alan Yau, que vem acumulando prêmios e público em sua meia dúzia de restaurantes de comida oriental. Dois deles têm uma estrela Michelin cada um: o concorrido Yauatcha e o consagrado Hakkasan. E há, é claro, os ubíquos franceses, cujos restaurantes estão lotando como nunca, desafiando as rusgas que há séculos dividem o Canal da Mancha. Os chefs de lá também estão na moda por aqui, talvez até mais do que em Paris. E estão descobrindo em Londres um belo lugar para cozinhar livres da pressão de seus pares. Daniel Boulud, Hélène Darroze, Galvin La Chapelle, Bruno Loubet, todos eles abriram restaurantes na cidade há pouco, engrossando uma lista que já contava com nomes como Alain Ducasse, Joël Robuchon e Pascal Aussignac. Prova de que, nesta Londres que finalmente aprendeu a comer, há espaço para todos. Inclusive os franceses. |