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Santana do Livramento, RS
Sete da manhã, noite ainda, e Alcino e Joyce já estão lá, na beira da estrada, espantando o frio com chimarrão. Eles e as duas crianças, no meio da campanha gaúcha, esperando o pessoal do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) acordar para recebê-los. São a mais nova família a engrossar a pequena população daquele acampamento remoto, quase na fronteira do Brasil com o Uruguai, moradia provisória dos que aguardam um pedaço de chão. Loraine Lopez Maciel, a médica, chega junto com as primeiras luzes do sol sobre as coxilhas. Vem com mais três médicos em formação – Felippe, Gabrieli e Luiara, brasileiros como Loraine – e ainda uma unidade móvel, um micro-ônibus transformado em consultório. Estamos em Santana do Livramento (RS), terra de grandes estâncias, outrora enriquecida pela produção de carne, hoje arruinada pela falência dos frigoríficos no final do século 20. Tal foi a massa de desempregados decorrente do declínio que, desde então, surgiram 33 assentamentos no município, hoje regularizados. E agora mais este, acampamento de lona ainda, levantado há apenas dez dias a meia hora do centro da cidade. Loraine cuida pessoalmente de vinte deles. E terça é o dia de visitá-los – a cada semana um. Dia de “mutirão”, como chamam. Mas quando Loraine atende na UBS do centro, nos outros dias da semana, é também à população rural que ela se dedica. De carro ou a cavalo, chega gente de todos os rincões para se consultar com a doutora. Algo inédito em Livramento: um posto especializado em atender o povo da campanha e seus males intrínsecos, como lombalgias e tendinites causadas pela combinação da lida no campo com o frio polar do vento minuano. Mallet, PR Quando soube que vinha para o Brasil, a cubana Yailin Aguilera esperava o óbvio: o sol, a pele morena e, possivelmente, alguma situação de violência semelhante à da favela onde trabalhou em Caracas, na Venezuela. Em vez do sol, porém, Yailin encontrou o sul. E o frio. E gente loira. E uma cidade de poucos acontecimentos, onde o alvoroço se resume aos eventos tradicionais que acontecem ao longo do ano, como a Festa do Kiwi e a Hailka, celebração da comunidade ucraniana. Mallet, chama-se o lugar. Fica no interior do Paraná. E, de vez em quando, até neva – só para aguçar a lembrança da terra natal dos moradores mais velhos, provenientes da Ucrânia e da Polônia. Apesar do nome francês (homenagem a um marechal gaúcho que lutou na Guerra do Paraguai), Mallet é uma das primeiras colônias eslavas do Paraná, fundada na década de 1890 e sacramentada em 1903 com a construção da igreja de São Miguel Arcanjo, hoje o mais antigo testemunho da presença ucraniana no país. Ela fica no distrito de Dorizon, de maioria ucraniana, a 6 quilômetros do centro, o mesmo onde Yailin atende. Seu marido, Policarpo, igualmente cubano, foi designado para outro distrito, Rio Claro do Sul – este formado por imigrantes poloneses. Tanto em um quanto em outro, ainda há quem não fale português. Como a senhora que chegou na UBS reclamando de dores abdominais, em polonês. Foi preciso a neta como intérprete para que Yailin entendesse o que ela sentia. Esse era, de fato, um receio da comunidade: como se comunicar com uma médica estrangeira? “Eles estavam desconfiados no início”, lembra a cubana. Por sorte não houve problemas. Pelo contrário: foi uma alegria ter uma médica disponível todos os dias da semana em Dorizon, onde antes só havia atendimento uma vez por semana. E nada de visita domiciliar. Seja em que língua for, a presença de Yailin fez toda a diferença por aqui. Antônio Prado, RS Orgulhosa detentora do título de “cidade mais italiana do Brasil”, a gaúcha Antônio Prado tem o maior acervo de casas de madeira tombadas no país. Ao todo 47, sendo que as mais antigas ultrapassam um século de vida. A casa de Beloni de Fátima também é de madeira, mas nem um pouco antiga, muito menos tombada. E nem de longe se parece com os casarões erguidos pelos imigrantes italianos no centro da cidade. O imóvel, erguido no alto de um dos morros que circunda Antônio Prado, tem só dois quartos, nos quais se distribuem dona Beloni, uma de suas filhas e seus quatro netos. Adrian, de 8 meses, é o mais novo morador da casa. E, também, o foco de atenção do médico cubano Jaroslav Fleites, visitante contumaz daquela moradia desde o nascimento do menino. Em 2015, Antonio Prado ganhou um programa inédito de puericultura: mal o bebê nasce, já tem uma agenda de acompanhamento pediátrico para quase toda a infância. Durante o primeiro mês, mãe e filho recebem o médico em casa. A partir do terceiro mês, a mãe pode participar de um grupo educativo no posto de saúde, onde aprenderá a alimentar e cuidar do bebê. Depois virão outras atividades, até que a criança alcance a idade de 9 anos – sempre acompanhada de perto por um médico. “Em 114 anos de Antônio Prado nunca houve isso”, afirma Celica Vebber, a secretária de Saúde. Os idosos, como dona Beloni, também recebem cuidados especiais: para eles, são oferecidas atividades semanais de exercícios e de saúde mental. Como diz o médico Jaroslav, “é muito bonito poder trabalhar assim com as pessoas”. São José dos Ausentes, RS Quando chegou ao Brasil, em julho de 2014, o cubano José Quinones Díaz já trazia no currículo uma guerra civil e um furacão. A guerra foi a da independência do Timor Leste, onde José passou quatro anos num campo de refugiados, curando feridas produzidas com os mais improváveis artefatos – facas, pedras e flechas entre eles. A experiência com o furacão aconteceu na Guatemala e foi mais curta – apenas alguns meses –, mas não menos intensa: ali, o médico se ocupou de cuidar dos milhares de flagelados do ciclone Stan, que varreu o país em 2005. São José dos Ausentes, cidadezinha de 3.500 habitantes cravada numa região de campos e coxilhas no alto da Serra Gaúcha, não tem nada de bélica e muito menos padece de desastres naturais – salvo o frio, que no inverno faz baixar os termômetros a menos de zero. Mas José era necessário aqui: 70% da população do município vive na zona rural, a maioria em fazendas a dezenas de quilômetros do centro urbano, acessadas por estradas de terra nada gentis. Hospital público, só em Vacaria, a 100 quilômetros daqui. Só mesmo um especialista em urgências médicas para dar conta de atender, o mais rápido possível, casos de infarto, convulsões, edemas pulmonares e acidentes de carro no meio do nada. Tudo isso já aconteceu desde que José chegou. "É um trabalho em tempo integral", ele comenta, dizendo-se grato pela oportunidade de viver tão próximo do limite entre a vida e a morte. "Me sinto abençoado de poder estar aqui. Situações como essas me tornam um profissional melhor. E mais humano também." |