Reportagem publicada na revista Lonely Planet em janeiro de 2012.
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Santos, rainhas e leões
Não são nem dez da noite e Iemanjá já se apossou de quase uma dúzia de corpos no terreiro de Pai Raminho. Estão todos ajuntados no centro do salão, cada um mergulhado em seu êxtase particular, entregue por inteiro à entidade que os atabaques ajudaram a invocar. Quem não virou no santo dança em volta, os filhos todos da casa rendidos a um delírio coletivo que já dura mais de hora. É dia de festa no Jardim Brasil, bairro da periferia de Olinda. Logo mais, um cesto imenso – chamado de "panela" – sairá do terreiro em direção ao mar, repleto de oferendas à orixá da água salgada. Iemanjá deve estar contente, pois continua arrebatando mais gente, inclusive da plateia. Pai Raminho também está. Sentado em seu trono forrado com pele de leopardo, assiste a tudo com grata reverência, arrancando da garganta os cânticos que, um a um, vão atiçando a fé daquela pequena multidão. De maracatu, Pai Raminho não gosta muito ("por causa da bebida"). Mas cumpre de bom grado o nobre encargo que lhe incumbiram há quase três décadas, que é o de conduzir as orações da Noite dos Tambores Silenciosos, quando as mais importantes nações de maracatu de baque-virado se reúnem para celebrar seu carnaval. A cerimônia tem raízes antigas, mas desde a década de 1960 acontece oficialmente no Pátio do Terço, em Recife, onde no passado existiu um dos terreiros mais influentes da cidade – do qual Pai Raminho fez parte – e um principais pontos de convergência da comunidade negra. A Noite dos Tambores Silenciosos ocorre sempre na segunda-feira de Carnaval e atinge o clímax à meia-noite, quando as luzes do bairro de São José se apagam, as tochas se acendem e Pai Raminho entoa as loas que reforçam o vínculo do maracatu com o candomblé e outros cultos afrobrasileiros. Reverência especial é feita a Iansã, que é a intermediária entre os vivos e os eguns, os espíritos dos ancestrais mortos. Eles é que de fato são cultuados no maracatu, e é a eles que os devotos pedem licença e proteção para sair no Carnaval. Não custa dizer que a figura principal do folguedo é justamente uma boneca de madeira conhecida como “calunga”, que nada mais é que a personificação de um egum. Afinal, foi nos terreiros de Recife e Olinda, iguais aos de Pai Raminho, que o maracatu floresceu. Ali, entre santos e atabaques, ganhou força e vitalidade, até tornar-se a mais negra das manifestações carnavalescas pernambucanas. Digo “floresceu” porque o nascimento mesmo se deu na porta das igrejas, determinando uma natureza sincrética que até hoje se preserva. Vale lembrar que a Noite dos Tambores Silenciosos acontece aos pés da Igreja de Nossa Senhora do Terço e inclui, entre as louvações aos orixás, pedidos de bênção a Nossa Senhora do Rosário, padroeira dos negros brasileiros. A teoria mais difundida sobre a origem do maracatu é a que associa o folguedo a uma velha prática do Brasil Colônia, a da coroação dos reis do Congo. Nos séculos 17 e 18, era comum que a Igreja, com o apoio dos senhores de engenho, escolhesse líderes entre os escravos e fizesse deles os protagonistas de uma espécie de teatralização dos cortejos africanos. Era, evidentemente, uma forma sutil de manter o controle sobre os negros. “Os reis serviam como intermediários entre o poder estabelecido e os escravos”, explica Leonardo Esteves, antropólogo estudioso do maracatu. Em Minas Gerais, ele ressalta, o mesmo costume deu origem à congada. Depois da coroação, os negros tinham carta branca para divertir-se em seus batuques. “Divertir-se”, claro, aos olhos dos padres, porque na prática os tambores soavam mesmo para exaltar os orixás. Era pura reza. O maracatu virou festa de terreiro e só no século 19 é que começou a mostrar a cara nas ruas, durante o Carnaval. Surgiram as nações, muitas ainda na ativa, portando nomes que faziam clara alusão à origem africana, como Leão Coroado, Elefante e Cambinda Estrela. Como tudo relacionado ao candomblé no Brasil, o maracatu sofreu forte repressão no século seguinte e quase desapareceu. Até recobrar força total nos anos 90, graças à articulação das comunidades afrodescendentes e ao impulso do movimento mangue beat (cujo principal líder era Chico Science) e sua farofa de ritmos. De repente, o maracatu virou moda. Foi na esteira dessa onda que Olinda ganhou sua própria Noite dos Tambores Silenciosos. Embora reis e rainhas sempre tivessem existido na cidade, a tradição ali nunca teve o mesmo vigor que em Recife. O grande palco do maracatu, desde sempre, foi a capital pernambucana. Hoje, Olinda não só sedia diversos grupos como também concedeu lugar de destaque ao maracatu naquela que é uma das maiores festas de rua do Brasil, que chega a congregar mais de 1 milhão de pessoas. A cerimônia, aqui, acontece na segunda-feira que antecede o Carnaval e leva o nome de Noite Para os Tambores Silenciosos. Todo ano, oito grupos locais e dois convidados de fora partem dos Quatro Cantos e sobem a Rua do Amparo até o Largo do Rosário, onde tudo acontece do mesmo jeito que em Recife. E Pai Raminho quase sempre está lá, comandando as orações. Quem não estiver em Olinda nessa ocasião pode vir no Carnaval mesmo: todo dia tem cortejo de maracatu desfilando nas ladeiras. A maioria é do tipo baque-virado, ou maracatu-nação, uma expressão própria das cidades do litoral. Existe ainda o maracatu rural, ou de baque-solto, típico da Zona da Mata, que também encontra seu espaço na cidade (veja quadro). Aos dois, some-se ainda afoxés, rodas de coco, blocos de rua, caboclinhos, cirandas, pastoris, cavalos-marinhos e todas aquelas manifestações que fazem de Pernambuco um dos maiores celeiros de cultura popular do Brasil. O maracatu, porém, conquistou tal importância no Carnaval de Olinda que a prefeitura viu-se obrigada a criar uma programação específica. Durante os quatro dias da festa, o Mercado Eufrásio Barbosa (conhecido como Varadouro) transforma-se no Polo do Maracatu, onde grupos daqui e de Recife se apresentam toda noite, mostrando o resultado de meses de trabalho e séculos de tradição. Quem vê, nem pensa que por trás daquela folia toda existe uma brincadeira das mais sérias. “O maracatu é muito mais do que sério”, sublinha Afonso Gomes de Aguiar Filho, mestre da Leão Coroado, a nação de maracatu mais antiga do Brasil, em atividade ininterrupta desde 1863. E, como prova do que afirma, basta dizer que Mestre Afonso, além de chefiar os tambores durante o cortejo, também é pai de santo. Dos mais respeitados em Olinda. A tal ponto que recebeu o cetro da Leão Coroado das mãos do próprio Luís de França, mestre lendário que por quatro décadas esteve à frente da nação. Foi em 1996. Afonso nem do maracatu era, mas conhecia como ninguém os mistérios do candomblé. E isto bastava. Cheio de modéstia, ele diz que “mestre é Luís de França. Eu sou um conservador”. Quem conhece a Leão Coroado, porém, sabe bem que é com mãos de mestre que ele comanda o maracatu, da feitura dos instrumentos às obrigações religiosas. É tudo tão misturado na vida deste homem que a casa, o terreiro e a sede da nação ficam a pouquíssimos metros de distância uns dos outros, precisamente numa área do bairro de Águas Compridas, na periferia de Olinda, conhecido como “Buraco do Afonso”. Tudo tão modesto quanto ele, diga-se. Como é de praxe, aliás, entre as nações mais tradicionais, invariavelmente sediadas nas comunidades mais pobres de Recife e Olinda. A própria sede da Leão Coroado não passa de um terreno baldio, de grama rala, onde tudo que há é um fusca semi-abandonado e uma oficina com teto de zinco nos fundos, na qual se fazem e se reformam as roupas e os instrumentos. Aqui é onde nação ensaia. Noventa integrantes, no total, incluindo os muitos personagens que compõem um cortejo tradicional de maracatu de baque-virado: o rei, a rainha, a dama-do-paço (que carrega a calunga), as baianas, os embaixadores, os vassalos, etc. Atrás vem a percussão, que na Leão Coroado soma quase um terço dos brincantes. São duas caixas, um agogô, um ganzá e duas dezenas de tambores, chamados de alfaias, que quando soam juntas fazem estremecer os ossos todos de quem estiver por perto. Mestre Afonso é o maestro à frente da orquestra, mas confessa que, se pudesse, estava era lá, descendo a mão no couro do tambor. “Gosto mesmo é do batuque. Gosto de segurar a história lá atrás”, ele diz, enquanto termina de passar a corda numa alfaia de umas 20 polegadas que ele mesmo cavou do tronco de uma macaíba. A melhor madeira, por sinal. “Som como esse, não tem.” Antigamente, ele conta, era costume “calçar” as alfaias, ou seja, submetê-las a um ritual mágico de proteção espiritual. Como hoje nem todo batuqueiro é “da religião”, como ele define, a prática perdeu o sentido. Mas, na medida em que pode, Mestre Afonso faz valer o título de babalorixá, impregnando de sentido religioso tudo que estiver relacionado ao maracatu. Os laços com o candomblé e outros cultos semelhantes são, inclusive, o que para os tradicionalistas determinam a legitimidade de uma nação de maracatu. Na Leão Coroado, nenhum cortejo sai à rua sem uma consulta aos eguns e aos orixás. Até agora nunca aconteceu de eles impedirem um desfile de Carnaval, mas por diversas vezes Mestre Afonso foi obrigado a recusar convites de apresentações fora-de-época, por expressa recomendação dos de lá. O mesmo ocorre na Nação Tigre, do bairro olindense de Peixinhos. Só que, ali, até o destino do maracatu foi lido nos búzios. A história começa em 1975, quando o grupo foi criado como um braço da Nação Elefante, uma das mais tradicionais de Recife. Naquele mesmo ano, porém, uma enchente destruiu a sede e afundou o sonho de seus fundadores. O Tigre permaneceu três décadas desativado. Até 2008, quando Fabiano Pedro da Silva, herdeiro do terreiro de seus avós, recebeu uma mensagem de Xangô: “Vai chegar surpresa pra tu”. Dito e feito: semanas depois, Seu Trinca, entidade do catimbó, baixou no corpo de sua tia confirmando o aviso de Xangô. A Nação Tigre havia de voltar. Fabiano vinha de uma experiência de quatro anos como rei na Leão Coroado, e isso era tudo. Não tinha tambores, roupas, nada. Então, tomou emprestada uma máquina de costura, construiu os instrumentos e botou o maracatu de pé. Estreou no Carnaval de 2010 com sessenta integrantes, já de cara conquistando o terceiro lugar no concurso oficial. Agora Fabiano quer uma sede. Por ora a Nação Tigre ensaia no fundo da casa, na mesma sala que serve de terreiro para os rituais de candomblé e da jurema sagrada, culto que mistura elementos africanos e indígenas. Na parede, um retrato de Dona Maria Júlia do Nascimento, ou Dona Santa, matriarca maior do maracatu pernambucano. É dela o espírito alojado na boneca que a mãe de Fabiano nos mostra, cercada de regras e cuidados. “No maracatu, nada é aleatório”, diz o babalorixá. E resume: “é uma segunda religião”. Nem tudo, porém, é fé no maracatu de hoje. Ainda mais depois que o baque-virado virou moda, conquistou a classe média e desligou-se de sua ascendência religiosa. Nas últimas duas décadas, dezenas de grupos nasceram em Olinda com objetivos outros que não o de cultuar o orixás. O mais antigo é a Nação Pernambuco, fundada no final dos anos 80 por jovens interessados em realizar um trabalho artístico inspirado nos cortejos tradicionais. Além do bloco carnavalesco, eles criaram uma escola de dança e percussão, sediada no Mercado Eufrasio Barbosa, e um espetáculo de palco, que viaja o mundo. E contribuíram de forma decisiva para a disseminação do ritmo Brasil afora. “Antes, maracatu era coisa de preto e xangozeiro. Não se dava a importância que ele tinha”, diz Amélia Veloso, produtora e coreógrafa do grupo. O vento, felizmente, mudou de direção, e foi valendo-se disso que Nilo Oliveira pôde desgarrar-se da Nação Pernambuco para criar seu próprio maracatu, o Maracambuco. Já são quase vinte anos de trabalho, não só artístico, mas também social: o grupo atende cerca de 300 jovens do bairro de Peixinhos, oferecendo-lhes a oportunidade de brilhar em outro lugar que não o tráfico de drogas. A pequena sede funciona atrás de uma loja de motopeças, numa das avenidas mais movimentadas de Olinda, e é lá, numa salinha sem janela, que Nilo passa os dias costurando os figurinos do Carnaval seguinte. As criações, todas suas, ele diz que concebe dormindo. “Tudo nasce no sonho”, afirma. Embora o Maracambuco não seja uma nação no sentido tradicional, tem lá seu pé na religião. Nilo mandou fazer a calunga com todos os devidos preceitos, abençoou os tambores e não arreda o pé da sede sem consultar as entidades. Neste momento, Nilo está especialmente tenso, pois, como reza a tradição do grupo, vai pela primeira vez botar na rua o cortejo do próximo ano. “É para saber se o Carnaval vai ser bom”, ele diz. Se os espíritos aprovarem, então está tudo certo. E é numa noite particularmente quente de dezembro que o Maracambuco faz sua primeira aparição pública com os novos figurinos, bem na frente do terreiro de Dona Maria José. A lua está cheia, alinhada com a Rua da Palha, no centro histórico de Olinda, brilhando por trás do cortejo. São cerca de vinte jovens. Eles poderiam estar todos morrendo no tráfico, mas estão aqui, fazendo vibrar os tijolos das casas, entregues a um êxtase não muito diferente dos frequentadores do terreiro de Pai Raminho. O povo entende e se amontoa em volta, dançando junto, pedindo a bênção. Os fogos estouram, a apresentação termina e Nilo, quando perguntado se o Carnaval vai ser bom, abre um sorriso imenso: “Vaaaaai! Com certeza!”. Os de lá, parece, gostaram. |