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Fritz Müller era um homem dado às pequenezas. Ainda na Alemanha, onde nasceu, estudou a anatomia das sanguessugas de Berlim. Depois no Brasil, para onde se mudou em 1852, investigou o gosto das formigas pelas embaúbas, a conduta sexual das abelhas jataí e a preferência das borboletas por certos tipos de cores. Esquadrinhou também a vida dos lagostins, a fim de comprovar a teoria de Charles Darwin sobre a evolução das espécies, justo quando ninguém no mundo o fazia. Terminou conquistando o respeito do próprio naturalista inglês, com quem trocou cartas por 17 anos, um alimentando de evidências o trabalho do outro. Para Darwin, Fritz Müller foi o “príncipe dos observadores”. Dividido entre Blumenau, onde foi médico, e Desterro (hoje Florianópolis), onde foi professor, o maior naturalista em terras brasileiras do século 19 dedicou quatro décadas de sua vida aos seres ínfimos dos trópicos. Morreu aos 75 anos, à beira do Rio Itajaí-Açu, cercado de bromélias.
Nelson Bauer é do tempo em que ainda não haviam inventado os arquitetos. Lugar de morar se fazia à unha, tombando tora no mato, secando tijolo no sol. Foi assim com a casa onde mora desde que nasceu, fincada num fundo de vale, rente a um córrego sinuoso, a poucos quilômetros da Vila Itoupava, distrito de Blumenau. Obra enxaimel erguida pelo avô em barro e canela-preta com a ajuda de dois carpinteiros, a casa, de tão sólida, continua de pé tal como foi feita, há exatos 103 anos. Passou por reforma apenas uma vez. O rancho ao lado é mais novo, mas igual de resistente. Tem seis décadas de vida, contadas a partir do dia em que Nelson e seu pai, munidos da então novíssima serra de quase 2 metros de comprimento importada da Suíça, começaram a subir os morros com o fim de transformar cabreúvas e imburanas em ripas verticais. Durante anos o rancho abrigou um engenho de cana movido a tração de bois – naquele tempo, também o açúcar, como as casas, se fazia no sistema artesanal. Hoje é uma garagem. Mas a serra continua lá, enfeitando a parede num canto próximo de onde ficam as motos. Sido Ramthun mora com três cães, 11 vacas, umas 50 galinhas e mais de cem pombos. Com todos, comunica-se em alemão. Inclusive os pombos. “A gente chama – komm, komm – e eles vêm.” Esses ele cria à solta, dispersos pelos telhados e pelo milharal, para depois capturar com tarrafa quando é hora de vender. Quem compra é um senhor de Curitiba, supostamente para soltá-los numa praça. Sido vive só, mas recebe muitas visitas, inclusive gente da Alemanha em passagem por Pomerode. Como os pombos, eles compreendem quase tudo o que Sido diz. Ao contrário de Sido, que não entende coisa alguma do que falam aqueles alemães. Elka Christina é a única ruiva num mar de loiras. Precisamente 25, todas invariavelmente tensas, cada uma à sua maneira: há as que rezam, as que andam em círculos e as que recitam o discurso para si mesmas, na frente do espelho. Elka está nervosa também, mas parece segura. É uma das raras candidatas à rainha da Oktoberfest de 2013 que não tingiram seus cachos de loiro. “Resolvi assumir.” Manobra ousada, embora legítima: pelas regras do concurso, carisma, eloquência e elegância são critérios bem mais decisivos do que a cor dos cabelos. Afinal, a função de uma rainha da Oktoberfest – e suas princesas consortes – não é outra senão promover o evento nas feiras do país. Quem conquistar o posto há de passar um ano circulando de coroa na cabeça, anágua no torso e sorriso no rosto para atrair os futuros turistas. Trabalho fácil não é, mas mobiliza dezenas de meninas, ansiosas por viver seu ano de realeza. Nem mesmo o concurso de Miss Blumenau atrai tantas candidatas. Em tempo: Elka não foi classificada. E jura que não foi por causa do cabelo. Hans Hermann Ziel fabrica flautas de bambu, oboés de jabuticabeira e fagotes de araribá. Acaba de terminar também uma bombarda de cajueiro-japonês, réplica exata de um modelo renascentista alemão, datado de 1600. Na falta das madeiras originais, que sirvam as de cá. “A jabuticabeira é muito fácil de trabalhar”, diz. Herr Ziel, alemão que se mudou para o Brasil em 1968, divide-se entre a igreja e a música desde os 22 anos, quando construiu seu primeiro instrumento. Uma rabeca. Dividir é modo de dizer, pois na fé luterana, cantar e tocar é o mesmo que rezar. “A música abre o coração para que entre a mensagem de Deus.” Sim, herr Ziel, além de luthier, também é pastor. E multi-instrumentista: toca de violino a trombone de vara. Também rege corais e orquestras locais. E ainda cuida do Museu da Música, em Timbó, que montou em 2003, reunindo seus instrumentos e outros que ele recolheu pelo vale. Hoje aposentado, quase não sai de casa – um chalé no alto do morro, entre Gaspar e Blumenau. Passa os dias ali, entre bem-te-vis e saíras, fabricando ainda mais instrumentos, reproduções irretocáveis de antigos exemplares alemães. Um de seus orgulhos é o órgão de tubos que construiu com os restos de uma velha estante de pinheiro, trazida da Alemanha. Tem teclas de jatobá e fica na sala, ao lado da mesa de jantar. Marcelo Bratke conheceu a música através da escuridão. Foi quase cego até os 44 anos, quando uma cirurgia mostrou-lhe o mundo em cores nunca imaginadas. Antes disso, o mundo era o som. Ainda criança, na chácara do avô em Campos do Jordão, gastava as tardes ouvindo as rádios estrangeiras que chegavam, via ondas curtas, a um aparelho Blaupunkt. Escutava também os discos do avô – obras de Brahms, Beethoven e outros alemães, sobretudo –, mas abria o ouvido para os sertanejos de que o caseiro Julião tanto gostava. Quando o pai comprou um piano, Marcelo parecia já íntimo: aprendeu, de memória e sem enxergar partitura, um concerto de Bach. Era o início de uma carreira que depois seria internacional. O avô em questão era Oswaldo Arthur Bratke, arquiteto entre os grandes do país, filho de um imigrante da Silésia instalado em Botucatu. “Eu era muito apegado a ele. Foi como um pai para mim.” Marcelo não virou arquiteto, mas aprendeu a aplicar na música tudo que o avô lhe ensinara na vida, sobretudo as lições herdadas dos antepassados alemães. A retidão moral, a disciplina de estudo, a clareza de metas, tudo isso Marcelo sorveu desde cedo, com impactos mais definitivos que os das influências italianas e portuguesas que também carrega no sangue. “Sempre gostei mais da vertente alemã da família. Os resultados me pareciam melhores daquele lado.” Até dos Natais introspectivos, regados a canções alemãs, ele gostava. “Minha mãe achava deprimente, mas para mim era um Natal lindo, que me trazia luzes de outros lugares.” Quando sofreu a cirurgia, Marcelo diz ter enxergado, por fim, a luz do Brasil. Não por acaso, entregou-se desde então à obra de Villa-Lobos, de quem se tornou um dos grandes intérpretes. Hoje se equilibra entre Bach e as Bachianas. Paulo Volles constrói casas como quem monta quebra-cabeças. Viga por viga, encaixe perfeito, sem um prego sequer. Tal como faziam os primeiros colonos de Blumenau, entre os quais seu trisavô, chegado da Renânia no ano de 1864. Paulo Volles é um zimmermann. Um carpinteiro de casas enxaimel. Ao que consta, o único do Brasil. Aprendeu sem professor, frequentando moradias em ruínas, para depois arrematar os últimos ensinamentos com dois alemães em visita ao Brasil. Com eles desvendou o que faltava: as medidas exatas, os segredos do ofício, a exigência do uniforme. Chapéu de feltro, roupa preta – a cor dos carpinteiros na Alemanha. Conheceu também os rituais, antiquíssimos, que protegem e celebram a construção. Desde então, Paulo não levanta casa alguma sem fazer o Bauopfer, o rito de sacrifício. No passado era um animal, hoje é uma moeda que se põe entre o alicerce e o baldrame, acompanhada de oração e marretadas, para abençoar a moradia. Feita a cerimônia, basta um dia apenas para que Paulo, com a ajuda da família, erga a estrutura em treliça que depois receberá o preenchimento de tijolos. Construções enxaimel são, acima de tudo, práticas. Caso seja preciso, serão desmontadas com a mesma agilidade com que foram postas de pé. Era muito comum no passado: mudava-se de endereço com a casa junto. Hoje, quem quiser fazê-lo, basta falar com Paulo Volles. “Nós já mudamos uma casa inteira de lugar, a uma distância de 250 quilômetros, entre Blumenau e Urubici.” Curt Walter Gropp entrará para a história da Oktoberfest como o homem que inventou o tirante para caneco de chope. Acessório utilíssimo, diga-se, sobretudo naqueles momentos da festa em que o estado alcoólico favorece a perda de tudo que não esteja preso ao corpo. Ele conta que a inspiração lhe veio antes mesmo de existir a Oktoberfest: foi nos bailes da cidade, onde era comum que as pessoas perdessem seus respectivos canecos toda vez que deixavam a mesa. Daí a ideia: uma tira, uma argola e estava inventado o tirante. O negócio cresceu com a festa e agora o senhor Gropp dedica-se a vender não apenas os tirantes, mas toda uma infinita variedade de suvenires temáticos. Fazem muito sucesso também os chapéus, que ele mesmo fabrica e enfeita com os penachos. Hoje as penas são compradas, mas durante anos foi possível ver o senhor Gropp em longos passeios pelo zoológico de Pomerode, em busca das plumas que repousavam, rejeitadas pelas aves, ao pé das gaiolas. Nilo Volkmann tem 18 carroças na garagem. A mais antiga é de 1887, herdada do bisavô, tão velha que quase nem fica em pé. Diferente da carruagem que seu pai, imigrante pomerano, mandou trazer da Alemanha em 1943, hoje reformada e a serviço de passeios e traslados por toda Pomerode. Nilo esclarece que se trata de um carro de mola, veículo dotado de um engenhoso sistema de amortecimento que, no passado, tornava as viagens mais macias. Era muito útil no tempo das estradas de chão, quando o pai de Nilo percorria o Vale do Itajaí carregando as pessoas até onde quer que precisassem chegar – igrejas, maternidades, mercados ou hospitais. Essa e outras carroças perderam serventia, mas sobreviveram na garagem de Nilo. Até que ele decidisse devolver-lhes a vida, ainda que restrita a trajetos turísticos e ocasiões especiais. Casamentos, sobretudo. Desfiles também. Como o do último 7 de Setembro, onde uma carroça cinquentenária de seu pai voltou às ruas inteiramente reformada. Nilo botou até caixa de som na traseira, acoplada a um toca-fitas automotivo, de onde soaram canções alemãs. Sobre o repertório, explica: “Aqui é obrigado. Não pode tocar música internacional”. |