Série de reportagens publicadas no site da National Geographic Brasil sobre comunidades produtores de alimentos nativos, ameaçados de extinção. Fotos aqui.
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O negócio dos índios
Dois ou três golpes de machado e já era: em menos de cinco minutos, lá se vão dez anos de árvore. Fosse outra palmeira, como pupunha ou açaí, em pouco tempo brotava outra no lugar. Mas não a juçara: cada caule cortado é uma a menos na mata. Sua sobrevida se limitará a um tolete de não mais que meio metro de comprimento ou um pote de palmito em conserva, a serem consumidos com a mesma rapidez com que a árvore tombou. Talvez mais. Palmito, para quem não sabe, é o nome que se dá à extremidade do caule próxima à copa de algumas espécies de palmeira. O de várias é comestível, mas nenhum é tão tenro e saboroso quanto o da juçara. Logo ela, que não “perfilha”, como se diz. Ou seja, não gera novos brotos depois de cortada, como a pupunha ou o açaí. Imagine, então, o estrago de quase seis décadas de exploração comercial predatória pela indústria de conservas nas florestas litorâneas do Sudeste. Some o fato de que a juçara é uma palmeira exclusiva da Mata Atlântica – que já quase não sobra no país – e você entenderá porque nos bufês a quilo o palmito da juçara foi sistematicamente substituído pelo da pupunha. Quando não foi, é cultivado (e é caro) ou ilegal. Hoje a palmeira-juçara é uma espécie ameaçada. Em estado natural, limita-se a áreas isoladas do litoral paulista e a algumas poucas unidades de conservação – e mesmo essas também não são lá muita garantia de proteção. É bem sabida a ação de centenas de palmiteiros clandestinos, que passam dias acampados dentro da área de parques nacionais cortando juçaras e processando o palmito da maneira menos higiência possível. Só no estado de São Paulo, calcula-se que pelo menos 50 toneladas de palmito de juçara sejam vendidas ilegalmente. Isso equivale a cerca de 75 mil palmeiras no chão. No litoral norte de São Paulo, os primeiros a sentir o sumiço da juçara foram os índios Guarani, consumidores do palmito desde muito antes da chegada das conservas. É palmeira da maior importância para eles, pois dela não só tiram o alimento como ainda aproveitam o caule e as folhas para a construção de casas. Também é complemento de renda familiar desde a década de 70, quando a construção da Rodovia Rio-Santos aumentou o fluxo de turistas e levou dezenas de índios a vender toletes de palmito na beira do acostamento. A estrada trouxe um novo mercado consumidor, mas também a especulação imobiliária. Aí, além da juçara que já rareava por conta da exploração comercial, também a floresta capitulou diante da proliferação de condomínios e casas de veraneio. Resultado: a palmeira, que já era pouca, quase sumiu da vida dos Guarani. “A gente tinha que ir cada vez mais longe na mata buscar palmito”, lembra Adolfo Timótio, cacique da aldeia situada na Terra Indígena Ribeirão Silveira, na divisa de Bertioga e São Sebastião. E, quando encontrava, não raro era uma árvore jovem, de caule fino e pouco rentável. Adolfo conta que a pressão sobre o território Guarani favoreceu a criação da reserva em 1987 – primeiro com 948 hectares de área, depois ampliada para 8.500 em 2011 –, mas não resolveu o problema da escassez de juçara. Então, numa manobra inédita, os índios do Ribeirão Silveira anteciparam-se à lei ambiental e estabeleceram, eles mesmos, cotas de extração para cada família. E, mais importante, procuraram assegurar o futuro das gerações seguintes criando seu próprio palmital. Aos poucos, deixaram de ser coletores para tornar-se produtores. Em meados dos anos 90, os Guarani começaram a plantar pés de juçara no quintal de suas casas, tal como brotavam na mata, misturados à vegetação original. É o que tecnicamente se conhece como “agrofloresta”, uma forma de conciliar o cultivo agrícola à preservação da mata nativa. Isto se aplica perfeitamente à juçara, já que se trata de uma espécie que exige umidade para germinar e sombra para crescer. Ou seja, dispensa o desmatamento. “A juçara não gosta de ficar fora da floresta”, comenta Maurício Fonseca, coordenador da Fortaleza Slow Food do Palmito Juçara junto com o cacique Adolfo. O plantio no início se fazia de maneira um tanto empírica, sem muito refinamento no manejo. E ainda era misturado à produção de pupunha e açaí, espécies amazônicas cujo cultivo fora estimulado pela Funai na époc a, como alternativa à juçara. Como estas são plantas mais produtivas, porém, acabaram por dominar os quintais guaranis. Em 2004, quando a fundação Slow Food criou a Fortaleza do Palmito Juçara, menos de um quarto das palmeiras plantadas na reserva eram nativas. Nesse sentido, a criação da Fortaleza foi crucial, já que o programa permite captar recursos financeiros para estimular a produção de um alimento ameaçado de extinção. A Slow Food coordenou diversas ações na reserva, mas talvez a mais importante tenha sido o inventário realizado em 2008, quando dezenas de índios foram mobilizados para medir, numerar e identificar as juçaras que cresciam em seus quintais. E o que se descobriu foi revelador: a incidência estava bem abaixo do que a legislação exige para um plano de manejo. Pela lei, por exemplo, deveria haver no mínimo 3 mil palmeiras jovens por hectare. Na época, os Guarani tinham plantadas pouco mais de 400. O inventário foi o ponto de partida para a criação de uma cartilha de manejo sustentável em parceria com os índios, que no fim tornou-se a melhor maneira de garantir que nunca falte palmito na mata. Com as novas diretrizes, os Guarani da aldeia de Bertioga multiplicaram as plantas-mãe – aquelas destinadas a gerar sementes – e repovoaram de juçaras a floresta em torno da aldeia. Hoje, das 95 famílias que vivem na Terra Indígena Ribeirão Silveira, 15 dedicam-se ao cultivo de palmito. A maioria ainda planta pupunha e açaí, mas cada vez mais atenção é dada à juçara. Desde a criação da Fortaleza, o número de exemplares dessa palmeira triplicou. Hoje são cerca de 15 mil pés espalhados pela reserva. A produção envolve a família toda, inclusive as crianças, pequenas o suficientes para trepar nas palmeiras e colher os cachos que crescem perto da copa, cheios de coquinhos. A colheita é feita duas vezes ao ano, quando o fruto está maduro: uma em abril e maio, outra em novembro e dezembro. Mas existe também o que eles chamam de “canteiro natural”, que são aquelas áreas próximas à planta-mãe onde aves e pequenos mamíferos costumam jogar as sementes depois de comer a polpa. Os frutos ficam ali, no chão, germinando, e aos índios cabe apenas pegá-los e levá-los a seus canteiros. Quando não é a natureza quem adianta o trabalho, é preciso estimular a germinação das sementes, num processo que alterna cinco dias de secagem e uma semana de armazenamento. Aí, sim, os grãos vão para os canteiros, que estão sempre no meio da mata, numa área sombreada e úmida, geralmente perto de algum rio. Lá, as mudas passarão em torno de cinco meses, até perder as primeiras folhas. É o sinal para que sejam replantadas nos viveiros, que podem ser naturais também ou de alvenaria, geralmente comunitários. Mais seis meses ali e a juçara já está pronta para ganhar seu lugar definitivo na mata. Aos sete anos idade, ela começa a gerar os primeiros frutos. Aos oito, seu palmito já pode ser cortado. Nessa idade ainda é um tolete fino, de pouco valor comercial. Os melhores exemplares aparecem a partir dos dez anos, quando alcançam o auge de textura e sabor. Para a legislação paulista, a medida de quando a palmeira pode ser cortada está na grossura do caule: 9 centímetros de diâmetro na altura do peito, mínimo. Isso vale, claro, para a juçara cultivada. A selvagem tem seu corte proibido pela Lei de Crimes Ambientais desde 1998. Os índios do Ribeirão Silveira cortam palmito toda semana, sempre às quinta e às sextas, que é para garantir o estoque que será vendido na beira da Rio-Santos no sábado e no domingo. Cobram 10 reais o tolete – um real para cada ano de vida da juçara, se formos fazer as contas. Pelos toletes mais finos, fazem três por 10. Poderiam também vendê-los a restaurantes da região, mas aí esbarram no que talvez seja o maior obstáculo da cadeia produtiva Guarani, que é o acesso ao mercado formal. Uma das razões é que os índios precisam emitir nota fiscal de produtor, coisa que não têm. Além disso, sua escala de produção deveria ser bem maior, de modo a regularizar o fornecimento. “A gente precisaria juntar várias aldeias para ter boa quantidade de palmito”, diz o cacique Adolfo. A saída, porém, pode estar não no palmito, e sim nos frutos da juçara – menos nobres, mas não por isso menos lucrativos. E certamente mais ecológicos, já que sua exploração mantém a palmeira de pé. Os Guarani, por exemplo, já descobriram o potencial econômico do comércio de mudas: ao invés de esperar dez anos para transformá-las em palmito, eles a vendem para turistas e moradores de condomínios da região, como planta de jardinagem. Dependendo do tamanho da muda, chegam a cobrar até 10 reais, que é mesmo preço do tolete. Agora, os índios querem também produzir polpa de juçara, mirando-se em algumas experiências bem-sucedidas de comunidades caiçaras e quilombolas do litoral paulista (veja aqui). A ideia é investir na palmeira nativa como substituta do açaí, vendendo a polpa para a produção de sucos, cremes, doces e até receitas gourmet. Os dois frutos são muito parecidos, inclusive no sabor e na textura, mas o da juçara contém doses ainda mais altas de antocianina, uma poderosa substântica antioxidante. Faz mais de dez anos que os índios de Bertioga mandaram trazer do Pará uma máquina para extrair a polpa da juçara, mas só agora resolveram botá-la para funcionar. “O tempo Guarani é outro”, justifica Maurício Fonseca. Por enquanto andam na fase de testes, mas tudo indica que em breve teremos suco de juçara Guarani nos bares do litoral. Para os índios, seria um negócio e tanto: ao invés de vender toletes de palmito na beira da estrada, forneceriam polpa e mudas para os comerciantes e os moradores da região. “O interessante desse processo é que você não perde nada”, comenta Maurício. Nem mesmo a palmeira, que permanece de pé enquanto seus frutos prestam-se a outras utilidades: das sementes inteiras, extrai-se a polpa; das que foram comidas pelos animais, produzem-se mudas. “A semente volta para terra, repovoa a espécie e ao mesmo tempo gera renda. Esse é o processo mais sustentável da juçara”. Já o palmito, bem, esse teremos de nos acostumar a viver sem ele. É o preço por tê-lo tido em nossas saladas por tanto tempo. |