PANTANAL - O ÚLTIMO ÉDEN
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A cultura pantaneira
“Ermo se toca em sanfona.” Houve tempo em que os rios pantaneiros não carregavam apenas a água da chuva. Traziam também gente de longe, com a mala cheia de sabenças estrangeiras. No miolo da América do Sul, todos se encontraram: índios, castelhanos, portugueses, paulistas, paraguaios. Como a água que todo ano emprenha o solo, seus costumes se acomodaram à planície. Misturaram-se, ganharam sotaque, fincaram raiz. E de cá nunca mais saíram. Na zona rural de Cuiabá, por exemplo, ainda se ouve o eco de terras trasmontanas, vestígio de um português arcaico importado pelos bandeirantes no século 18 e aqui permanecido. Gente é “djente”; peixe é “petche”; e chão, “tchão”. Até bem pouco tempo atrás, era assim que falava o povo da capital. Também herança dos paulistas é a viola-de-cocho. Neta do alaúde, prima do violão, veio de Portugal e virou até patrimônio nacional. Nasce de um único tronco de madeira (em geral sarã, ximbuva ou cedro), da mesma forma que se escava o cocho que alimenta o gado. Daí o nome. Detalhe: a madeira só se corta em lua minguante, para não dar cupim. As cordas, os antigos faziam de tripa de ouriço, bugio ou macaco-prego. Hoje se usa linha de pesca, para deixar os bichos em paz. A viola-de-cocho brilha mesmo é em dia de festa. Especialmente na hora do siriri e do cururu, danças que o povo do norte pantaneiro não deixa morrer. A primeira, dizem, foi inventada pelos índios. É dança para sapatear sem culpa, ao som da viola, do ganzá e do mocho (um tambor de couro). Já o cururu é assunto sério, reservado às festas em louvor aos santos. Foi trazido de São Paulo e, na mão dos jesuítas, usado para catequizar os nativos: dançando cururu, eles aprendiam os mistérios da Bíblia. Considerando-se que o primeiro povoamento branco da região foi empreitada bandeirante, o Pantanal tinha tudo para virar paulista, como virou o Oeste brasileiro. Mas resultou meio agauchado, irmanado com os pampas e os vizinhos paraguaios. A cultura paulista se enraizou mais no norte, aprisionada nas imediações de cidades como Cáceres ou Poconé. Há razões históricas. Antes da inauguração da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil em 1914, era só uma a maneira de chegar ou sair do Pantanal: de barco, pelo porto de Corumbá. Quem quisesse ir à capital tinha de descer o rio Paraguai e contornar pelo Prata. Ou seja, o Rio de Janeiro era apenas o destino final de um trajeto que incluía Assunção, Buenos Aires e Montevidéu, cidades que prontamente se tornaram a referência maior do povo daqui. Aos poucos, no movimento inverso das águas pantaneiras, a cultura dos pampas invadiu a planície. Deu no que deu: pantaneiro hoje dança chamamé, usa guaiaca e toma tereré. Ao sul do rio Piquiri, música de baile sempre foi chamamé (dança do norte argentino tocada na sanfona) e polca paraguaia. Nas últimas décadas, o vanerão gaúcho também se impregnou nos salões. E nos momentos de sossego, à noitinha, há sempre uma guarânia para cantar os amores deixados do outro lado do rio. Que se tornam mais saudosos se regados a tereré. Tereré é bebida nacional paraguaia, e também pantaneira. Assim como o chimarrão, é feito da erva-mate, mas difere por ser tomado na guampa (chifre de boi) e gelado. Ideal para amansar os suores do corpo entre uma lida e outra. O chá ainda encerra o insondável poder de aglutinar patrões e peões, diluir hierarquias. É na roda de tereré, enquanto a bomba trafega de boca em boca, que fazendeiros e vaqueiros tecem o seu pacto de mútua solidariedade. Rodeados de distâncias, um não vive sem o outro. Também de inegável origem pampeira são os apetrechos de montaria – que aqui chamam de “traia”. Aliás, praticamente tudo o que cerca o cavalo foi importado de terras meridionais. E, assim como na campanha gaúcha, certos itens tornaram-se extensão do corpo do peão. Um deles é a guaiaca, largo cinturão de couro usado para carregar dinheiro, revólver e faca. O revólver é mais enfeite que arma e raramente cospe tiro. Já a faca é trabalhadeira que só: com ela, o peão sangra o boi, carneia, corta o couro, fabrica laço, chicote, rédea, cincha, péla porco, degola frango, corta fumo, abre picada na mata. Quando um menino ganha a primeira faca, é sinal de que virou homem. Passará a vida inteira sem desgrudar dela e do revólver, a não ser para comer ou dormir. É de menino também que o vaqueiro aprende a trançar e usar o laço. Mais que instrumento de trabalho, será também de afirmação: o bom laçador é sempre homem de respeito. No Pantanal, usa-se o laço trançado, grosso, provável invenção dos charruas trazida pelos paraguaios. Cada peão fabrica o seu, com a perícia e a paciência que só uma vida inteira no campo pode conceder. Seria bom se a mesma destreza com que o vaqueiro captura o gado bagual servisse também para laçar tradições fujonas. Sim: a cultura tradicional pantaneira está esvaindo-se como a água que escoa pelo rio Paraguai. Ainda há uma ou outra roda de tereré que conta histórias de onças e de domas, mas elas interessam menos que os rumos da novela das oito. Os ventos da modernidade são por demais sedutores para quem passou tanto tempo longe do mundo, exercitando velhos ritos de comunhão com a natureza. xercitando velhos ritos de comunhou tanto tempo longe do mundo da modernidade, a cultura tradicional Se há um bicho em sério risco de extinção neste lugar, é o homem pantaneiro. Seu fim precede o do próprio Pantanal. (texto completo no livro) |