SACRACIDADE
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Stairway to Heaven
Há mais coisas entre o Céu e a Terra do que uma escada, mas, no terreiro de Mãe Paula e Pai Christian, são só dez os degraus que separam o mundo de lá do de cá. Dez degraus de azulejo e uma porta no meio. “Portal”, como chamam. E neste uma cortina de pano com flores brancas que se abre durante as giras, revelando para o povo aos pés da escada um pouco do teatro de espectros que se desenrola lá dentro. Pelo portal é que penetram os consulentes, conforme vão sendo chamados pelo nome, tragados pelo breu roxo alaranjado como se estivessem voltando ao ventre da mãe em busca de respostas. De lá retornarão minutos depois, regurgitados pelo sagrado e de algum modo renascidos, ou, no mínimo, renovados pelas mensagens de confiança e esperança que ouviram das entidades ali manifestadas. Ninguém desce aquela escada do mesmo jeito que sobe. O número 604 da Major Diogo já foi pizzaria e oficina mecânica, e ninguém sabe dizer quando foi que surgiu o desnível que deu origem à escada. O fato é que, quando o Núcleo de Umbanda Cacique Pena Branca se mudou para o imóvel em 2004, os degraus já estavam lá. “Não é uma coisa de que a gente gosta, mas serve como um freio”, diz Mãe Paula. “As pessoas chegam muito carregadas da rua. Essa separação faz com que elas se preparem para entrar num lugar que é sagrado.” Quem duvida que olhe para os dois lados do portal, na parede que serve de divisa entre o mundo físico e o espiritual, onde duas janelas enquadram, cada uma, uma “aldeia”: à direita, as entidades da umbanda (Erês, caboclos e afins), à esquerda os orixás – Oxalá (uma imagem de Jesus), Oxum (uma efígie da Imaculada Conceição), Egunitá (Santa Sara Kali, padroeira dos ciganos), Iemanjá (a célebre releitura da sereia europeia, só que sem o rabo de peixe). Alguém aí falou em sincretismo? Embaixo dos orixás, uma mesa dispõe figuras de ciganos e malandros entre moedas e cigarros. E, ainda mais embaixo, sob a mesa, escondem-se, no breu, os pretos-velhos. O que nem todo mundo sabe é que, só de entrar no terreiro, você de algum modo já fica imunizado contra a nhaca da rua. À esquerda da porta repousa a trunqueira, uma casinha dentro da casa cuja parede estampa uma imagem de São Jorge (ou Ogum) e uma placa onde se lê “Reino dos Exus” – sentinelas das almas, guardiões das forças espirituais que ali dentro se apresentam. “É a nossa defesa”, diz Mãe Paula. “Vai limpando as pessoas que chegam.” Pelo jeito só as que chegam, mas não as que passam na frente, sobretudo as afeitas a um certo proselitismo antimacumba outrora manifestado na forma de ovos e livros do Edir Macedo que voavam pela fresta sobre o portão. “Tivemos que botar grade”, explica Mãe Paula, ressaltando que agora, sim, a proteção é total. O piso é frio da porta ao altar – incluindo a escada no centro –, mas o calor é outro antes e depois do corrimão. Dez degraus abaixo, a temperatura é sempre alta nos dias de gira, pelo tanto de gente que se apinha na antessala do sagrado, fazendo fila para pegar ficha e aguardar, de pé ou nas cadeiras de plástico, o chamado do nome. Dez degraus acima, a temperatura é sempre ainda mais alta nos dias de gira, um calor uterino (não digamos infernal) certamente aquecido pelas lâmpadas de cores quentes e pelo rufar dos atabaques, mas sobretudo pela presença incorpórea dos de lá, que toda segunda-feira à noite vêm visitar os de cá e distribuir conselhos sobre tudo quanto é dor que pode afligir um ser encarnado. Não vamos dizer que a umbanda é a primeira religião cem por cento brasileira porque, né, não nos esqueçamos dos indígenas. Mas é certo afirmar que a umbanda virou, em número de frequentadores, a maior prática religiosa nascida em solo nacional. As estatísticas juram que eles não são muitos: segundo o censo de 2010, 400 mil pessoas no Brasil, 50 mil no município de São Paulo, mas sabemos que tem muito mais gente por aí acendendo vela para Exu do que se diz. Só no Cacique Pena Branca, segundo Mãe Paula, são atendidas cerca de 1.200 pessoas por semana. Inclusive padre, inclusive pastor. ”A pessoa geralmente vem parar no terreiro quando está lascada na vida. Já foi em tudo quanto é igreja e não conseguiu resolver o problema.” Hoje a umbanda é de todos, mas vale registrar: é fé que veio de baixo. A única de que se tem notícia a criar um panteão de excluídos com o qual os pretos, pobres e favelados da nação pudessem se identificar. Feita pelo povo, para o povo. Assim está inscrito no marco fundador, com hora, data e lugar de nascimento: às 20 horas do dia 15 de novembro de 1908, na Federação Espírita de Niterói, aonde Zélio Fernandino de Moraes, jovem aspirante à Marinha, fora levado para tratar de inexplicáveis distúrbios psiquiátricos. Durante a sessão, conta-se que Zélio desatou a incorporar caboclos e pretos-velhos, os quais o dirigente da mesa pediu que se retirassem, por considerá-los espíritos ‘’atrasados”. Naquele que deve ter sido o primeiro discurso antirracista mediúnico, Zélio, incorporado, retrucou que, se não havia lugar para eles ali, havia de fundar uma nova religião, “que falará aos humildes, simbolizando a igualdade que deve existir entre todos os irmãos encarnados e desencarnados”. Ao fim da preleção, o grand finale: “E se querem saber meu nome, que seja Caboclo das Sete Encruzilhadas, porque não haverá caminhos fechados para mim”. No dia seguinte, Zélio fundaria, em sua casa em São Gonçalo, a Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade, a primeira casa de umbanda do país. Como não existem registros, a não ser orais, jamais saberemos se isso tudo é fato ou mito (possivelmente uma mistura dos dois). A verdade é que a caboclada já vinha batendo ponto nos terreiros do país fazia algum tempo, em batuques democráticos onde se operava a barafunda habitual desta nossa terra. Deglutia-se de tudo naquela antropofagia anímica: dos orixás africanos às práticas mágicas importadas das pajelanças indígenas, com a desavergonhada inclusão de doutrinas e santos do catolicismo. O que Zélio fez foi organizar a bagunça dentro de uma moldura kardecista, acrescida de francas intenções humanitárias. Em certo momento, não sabemos quando, a nova crença começou a ser chamada de umbanda, palavra quimbunda cujo significado é algo como “lugar onde atuam os sacerdotes”. Os sacerdotes atuam, mas quem opera a encantaria toda são as entidades, exato espelho do populacho: caboclos, baianos, boiadeiros, pretos-velhos, marinheiros, ciganos, malandros e outros seres que na sociedade encarnada vagam pelas bordas do mundo, mas que aqui, neste palco sagrado, se manifestam como seres superiores destinados a servir de farol no serenar das angústias humanas. Nos centros de umbanda, o Brasil vira do avesso. E todo mundo é bem-vindo. Vide o altar do Cacique Pena Branca, certamente tão diverso em matéria de divindades – são três andares de imagens – quanto o público frequentador da casa e o corpo mediúnico, ambos multiétnicos, multiculturais e multiclasses. “Nós temos aqui da faxineira ao CEO de empresa”, diz Mãe Paula. Isso tanto no piso abaixo dos dez degraus, entre os consulentes, quanto no de cima, para além do portal, onde todos são iguais no teatro oracular, qual seja a entidade. E é tanta entidade – sem contar as infinitas ramificações – que cada uma ganhou dia próprio na casa. A cada segunda-feira, uma deidade se manifesta. Imagine, senão, a baderna: caboclo de penacho num canto, Zé Pelintra fumando no outro, Erê chupando bala acolá. E, para não misturar as energias, toda sexta tem gira de esquerda, que é quando se apresentam os Exus e as Pombagiras, seres que, além de guardiões, buscam a evolução espiritual tratando de aconselhar os encarnados – sem papas na língua, o que pode ofender os melindrosos. É por isso que, na abertura dos trabalhos, Mãe Paula avisa ao público presente: “Não pode brigar com a entidade”. Depois emenda: “Temos que refletir a respeito do que foi falado e, a partir daí, tomar nossas próprias decisões”. O Núcleo de Umbanda Cacique Pena Branca é um centro espiritual governado por quatro dirigentes, dois invisíveis e dois visíveis. Estes, os “encarnados”, são Mãe Paula, filha de Iemanjá, e seu marido, Pai Christian Duwe, filho de Ogum e do casal Renaldo e Terezinha, fundadores da casa no ano de 1977. Pai Christian, portanto, nasceu em berço umbandista, ao passo que Mãe Paula veio do catolicismo, batizada em igreja. Namorados desde a adolescência, bastou que alcançassem a maioridade para que uma preta-velha, incorporada na mãe de Christian, avisasse que os próximos na linha sucessória do terreiro seriam eles. Sabendo-se futuros sacerdotes, os dois dedicaram doze anos de sua vida ao estudo de tudo quanto fossem artes da magia: umbanda, candomblé, reiki, runas, tarô. “Mas a gente sempre soube qual era o nosso lugar”, diz Mãe Paula. “A gente gosta mesmo é da batida do atabaque.” Quanto aos outros dois dirigentes da casa, os “espirituais”, trata-se do Cacique Pena Branca, o caboclo que dá nome ao terreiro, padrinho de Pai Christian desde seu nascimento, e do Dr. Carlos Magno – não o célebre imperador romano, mas um médico homônimo que teria desencarnado num tempo distante e que hoje realiza curas e consultas se apossando do corpo do pai de santo. É o mentor da chamada Falange dos Médicos Espirituais, das mais importantes aqui. Cada médium tem o seu: o de Mãe Paula é a Dra. Christine. Os atendimentos médicos acontecem toda quarta-feira, das 10 da manhã às 10 da noite, no mesmo chão onde dois dias antes dançaram Zé Pelintra ou os caboclos. A dinâmica é a mesma da gira: cada pessoa aguarda no pavimento inferior o momento de ser chamada e, então, atravessar o portal espiritual, que neste dia se mantém de cortina fechada. Lá dentro a penumbra é rosa e o cheiro é uma mistura de álcool e alfazema, que preenche o ar guarnecido da música new age que sai do CD (os atabaques ficam encostados num canto). Toda cura, toda cirurgia, é operada sem sangue: apenas água, alfazema, álcool e algodão. E, claro, as mãos incorpóreas dos médicos espirituais agindo por meio de mãos humanas, capazes, segundo consta, dos mais improváveis milagres. “O atendimento é muito procurado porque as pessoas melhoram efetivamente”, diz Mãe Paula. A cada quarta-feira, pelo menos 400 indivíduos sobem aqueles dez degraus na esperança de cura. Tanto nas giras quanto nos atendimentos espirituais, o corpo mediúnico é o mesmo. São mais de cem médiuns na casa, que se revezam semanalmente. Quem não recebe caboclo ou médico falecido no mínimo é cambone, misto de assistente e intérprete simultâneo versado nas mais diversas línguas espirituais: é quem traduz o que a entidade disse, de um jeito que é só dela, para o caso de o consulente não ter entendido. Muitos cambones serão aconselhadores num futuro breve, desde que evoluam no desenvolvimento espiritual. Para isso, existe a escola: mais do que um terreiro, o Cacique Pena Branca é uma espécie de universidade do além, onde os alunos passam um ano mergulhando semanalmente na teologia umbandista e preparando o corpo para receber as entidades. E olha aí os dez degraus de novo: em matéria de estudo, eles demarcam a exata divisão entre a teoria e a prática. No andar de baixo, às quintas e sábados, as cadeiras de plástico se voltam para a lousa na parede, onde os professores Marcela Faustino e Jonathas Campos esmiuçam as doutrinas por trás das Sete Linhas da Umbanda, cada linha regida por uma dupla de orixás e suas respectivas irradiações divinas. Acima da escada, em semanas alternadas, ocorrem coisas como “aula prática de Oxalá” – um treino de gira, como dizem, que Marcela e Jonathas conduzem com rigor pedagógico, estimulando os novatos a se concentrar e a “pedir a irradiação dos orixás”, sempre ressaltando que “não adianta olhar para o colega do lado e copiar; tem que sentir a vibração”. Caso os atabaques não sejam suficientes para despertar o orixá interno, haverá sempre um adjá tilintando sobre a cabeça do aprendiz, “para dispersar a mente”. Marcela, nove anos de umbanda, jura que todo mundo pode desenvolver a mediunidade. “É uma questão de treino”, ela diz. Giza Oliveira, aluna do curso de Doutrina e Desenvolvimento Espiritual, é a prova: no começo, nem sentia arrepiar a espinha; hoje, o caboclo toma de assalto seu corpo antes que o atabaque chegue ao segundo compasso. E custa a sair. Giza diz que o treino é contínuo: todos os dias evocando a energia dos orixás, em particular quando tem gira. “A gente já acorda pensando na gira da noite. Passa o dia se concentrando, se preparando.” Quem vê, percebe: é pá-pum. Quando chega a hora da abertura dos trabalhos, cavalo de santo calejado é que nem chave de liga-desliga. Além da escola de desenvolvimento espiritual, o Cacique Pena Branca oferece também aulas de atabaque e baralho cigano, e ainda serviços das mais diversas artes ocultas, incluindo tarô, búzios, wicca e feng shui – os últimos dois especialidades de Mãe Paula, que, além de ajudar a harmonizar a casa das pessoas segundo os preceitos da geomancia chinesa, também realiza rituais neopagãos de queima de carma, em que se vale de uma pequena galeria de imagens que guarda numa estante do escritório, na parede atrás do altar. Isso inclui dragões, magos, anjos e santos, além de um Buda e um Ganesha. “Gosto de trabalhar com energia de diversas formas.” E já que sincretismo não é problema na umbanda, por que não aplicar feng shui no terreiro? “Se tem plantinha estratégica num lugar nada a ver, é uma cura de feng shui”, confessa a Mãe. De fato: bem ali, do lado de Zé Pelintra, um auspicioso matagal decora o lado esquerdo da escada, debaixo de onde Jesus é chamado de Oxalá e a Santa Sara dos ciganos recebe o nome de Egunitá, ambos abençoando o portal do teatro mágico, de cujo batente pende um daqueles amuletos dos índios norte-americanos, feitos de penas e fios entrelaçados. Já mencionei as espadas de samurai no interior do templo? That’s umbanda, e é bom que os americanos estejam preparados, pois em breve o Cacique Pena Branca abrirá sua primeira filial no estrangeiro, precisamente na Califórnia. Será que vai ter escada lá também? É bem provável que não: Mãe Paula, a bem da verdade, detesta aqueles degraus. “Quando a gente comprar esta casa, a ideia é passar o trator e nivelar tudo”. Aí, sim, céu e terra serão um só. Salve a caminhada! |