Reportagem publicada na revista Terra em setembro de 2005.
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"O senhor tolere, isto é o sertão"
Grande Sertão: Veredas, por volta da página 40. Diz Riobaldo: “Mas, o senhor sério tenciona devassar a raso este mar de territórios, para sortimento de conferir o que existe? Tem seus motivos. Agora – digo por mim – o senhor vem, veio tarde. Tempos foram, os costumes demudaram. Quase que, de legítimo leal, pouco sobra, nem não sobra mais nada.” Sobrar, ainda sobra. Pouco, mas sobra. Siga sempre o rumo do norte: onde Minas é quase baiana, onde rio brota de vereda e folha miúda rebrilha ao sol, onde povo ainda lembra de jagunço, onde a língua é outra, o tempo é outro. Eis o grande sertão – os Gerais que João Guimarães Rosa converteu em literatura. Pedaço de terra que já foi do tamanho do mundo. Hoje continua grande, mas já é pequeno. Sertão é palavra nossa, não tem em língua estrangeira. Sertão é sertão. Há quem diga que venha de “desertão”: miolo de nação onde o mato é grande e a população é pouca. O reverso da cidade, o avesso da civilização. “Nosso mar interior”, para o antropólogo Darcy Ribeiro, área vasta e seca que se estende pelas beiradas do Rio São Francisco mas nunca encontra o oceano. O sertão de Minas é chamado de Campos Gerais – os Gerais. Começam acima das cidades de Corinto e Curvelo e se alargam pelo noroeste até molhar-se nas águas escuras do Rio Carinhanha, até esbarrar nas serras de Goiás, até debruçar-se sobre terras da Bahia. Guimarães Rosa gostava mesmo era dos Gerais. Do “Alto-Norte brabo” que começava acolá de Cordisburgo, sua cidade natal. Ele mesmo, quando moço, devassara a raso esse mar de territórios ouvindo roceiro, topando com jagunço, acompanhando vaqueiro. Tudo gente que foi parar em página de livro, de grandes obras como Grande Sertão: Veredas, Sagarana, Manuelzão e Miguilim, Primeiras Estórias. Ao contrário do Nordeste, o que recobre o sertão dos Gerais é o Cerrado. Chão de areia, árvores tortas, arbustos espinhudos: quando não é pasto para gado, é paisagem de savana tropical, rica em bichos e em plantas. Aluno atento dos sertanejos, Guimarães reconhecia de longe os vegetais do cerrado: imbaúba, barbatimão, pequizeiro, barriguda, jatobá, taquari. E a palmeira buriti, coroando as veredas. “O senhor estude: o buriti é das margens, ele cai seus cocos na vereda – as águas levam – em beiras, o coquinho as águas mesmas replantam; daí o buritizal, de um lado e do outro se alinhando, acompanhando, que nem que por um cálculo.” Vereda se constata de longe: é onde tem buritizal. As veredas são oásis no sertão, nascentes de água que alimentam os rios e aglomeram bicho de tudo quanto é tipo. Água nos Gerais viaja assim: aflora do fundo da terra, vira córrego, vira rio e depois vai desaguar no Velho Chico. Vereda também é lugar de gente, lugar de morar. Ermina Pereira de Souza vive na Vereda da Estiva – afluente do Carinhanha, a poucos metros da Bahia – com uma neta e um de seus 11 filhos. “Ixe, moço, gosto daqui demais! A gente cria amor ao lugar, né? Uma vez teve uns homens que vieram aqui e disseram que a gente só tá aqui fazendo um bando de filho. Mas é a cidade que tá cheia de gente, não é que tá? Aqui toda a vida sempre foi sossegado.” É nas veredas, onde água nunca falta, que se aninha a população tradicional dos Gerais. Filhos eles também fazem, mas também levantam casa de taipa ou de adobe com teto de palha de buriti, cuidam da rocinha na várzea, espalham galinhas, vacas e bois, constroem mourão com pau de vinhático ou de sucupira, lavam a roupa na vereda. Lugarejos escondidos, apartados do mundo, onde a noite se ilumina com lua, estrela e lampião. Para o povo esquecer e ser esquecido. Tem sido assim há muito tempo, e, em certas brenhas do norte de Minas, continua sendo. Na Vereda dos Buraquinhos – onde uma grota ampla cavada pelo Rio Pardo inventou um dos lugares mais bonitos dos Gerais – esposa ainda se arranja à moda antiga. Manuel, jovem e solteiro morador, explica: “Pra casar, a gente vai na casa de alguém e pega a filha do outro. Moça da cidade não quer vir morar aqui, não.” Com Dona Ermina foi o mesmo. Seu marido foi buscá-la na Vereda do Rio-dos-Bois, a algumas léguas da Estiva. Isso faz mais de cinqüenta anos, no tempo em que o mundo era muito maior e sobreviver pressupunha varar longas distâncias. “Nós ia é pra Januária vender toicinho, arroz, farinha. Levava catorze dias em carro-de-boi, só pra ir.” E tudo produzido no próprio chão da vereda: “Os precisos era construído aqui mesmo, na terra. Deus deixou no mundo de tudo pro povo não passar precisão.” A máxima é comprovada pela nora, Maria, que vive à beira do Carinhanha em ajeitada casa de adobe revestida de barro. “A gente pranta milho, feijão, mandioca, tudo no brejo. A terrinha tá fraca, mas inda dá pra criar”. E, perpetuando antiqüíssima tradição da gente das veredas, extrai do buriti poderosa matéria-prima para uma infinidade de assuntos. Da polpa, faz doce. Da palha, o teto da casa. Do broto (que eles chamam de “olho”), vassouras, cestas e esteiras trançadas no bilro. Até cinqüenta anos atrás esse passo da vida era hábito alastrado pelos Gerais inteiros, quando eram terra varrida de lei que não mudava fazia três séculos. Grande Sertão: Veredas foi publicado em 1956, ano em que o presidente Juscelino Kubitschek começava a plantar no centro do país a nova capital nacional. Bem no meio do Cerrado, Brasília. A cidade matando o sertão. Depois, a rodovia: eixo de transformação profunda entre Belo Horizonte e o Planalto Central. O asfalto matando o sertão. Na boca de Riobaldo: “Diz-se que o governo está mandando abrir boa estrada rodageira, de Pirapora a Paracatú, por aí...” A cidade e o asfalto abriram caminho para a soja, e esta se espalhou como fogo de agosto. Até no extremo norte, onde toda estrada ainda é de terra, lavoura chegou antes de rodovia. Nos anos 70, colonos gaúchos subiram o chapadão ao sul do Carinhanha e apagaram o Cerrado para plantar soja e capim. No coração do Tabuleiro, fundaram Chapada Gaúcha – hoje feiosa e nada rosiana cidadezinha do norte mineiro. O lugar fica a cinco horas de cavalo da Vereda da Estiva, e Dona Ermina vem todo mês para cá. Ela já não vende nada, nem em Januária nem em Chapada Gaúcha. “Hoje nós tamos só é comprando os precisos.” Se até Dona Ermina, sertaneja legítima, rendeu-se às conveniências da cidade, o que será desses Gerais? Nem comitiva de gado – daquelas lendárias caravanas de centenas de cabeças e dezenas de dias da viagem – já não se topa mais. Só vaqueiro campeando umas reses entre o pasto e o curral. Gado hoje vai é de caminhão. E à noite, para não pegar sol. O sertão de Minas está ganhando geografia de arquipélago, ilhas espalhadas num mar de soja, capim, algodão e eucaliptos. A maior delas atende por Parque Nacional Grande Sertão Veredas, justa homenagem a Guimarães Rosa precisamente onde seu universo se mantém em estado mais bruto. Criada em 1989, a reserva triplicou de tamanho no ano passado: atravessou o Rio Carinhanha e estendeu sua vastidão sobre os Gerais da Bahia. Aqui dentro o cerrado preserva sua boniteza, as veredas exibem orgulhosas seus buritizais e bicho pode viver sem ameaça de caçador. Mas parque nacional é bom para preservar natureza. Gente é outra estória. O Ibama manteve oito famílias dentro da área, gente antiga com posse de terra garantida no papel. O que, neste caso, só complica as coisas. “A condição da gente é de viver na roça. Criar porco, galinha, prantar mandioca, milho. Tudo que a gente precisa fazer depende de desmate e de fogo, mas dentro do parque não pode mais”, reclama Antonio Pimentel, morador de vida inteira na Vereda da Areia. O Ibama até deixa Toinho ficar – desde que abandone o modo de vida sertanejo para preservar as veredas, tão sertanejas quanto ele. Mas Toinho está triste. Quer vender a roça, sair daqui, praticar sobrevivência à moda capiau em outro lugar. De preferência, longe de qualquer reserva. “Nós sabia fazer controle. Não deixava estragar vereda. Agora tem fogo fora de época, é prejuízo pra todos nós. Se o pessoal daqui não fosse conservador, o Ibama chegava aqui e tava tudo acabado. Não tinha nem parque.” As mais de 80 famílias de posseiros que viviam no parque nacional tiveram sorte diversa. Foram parar há quatro anos em assentamento do Incra nas bordas da reserva, perto da cidade de Formoso. Ganharam terra de até 50 hectares para plantar, para criar gado, dinheiro para levantar moradia e até casa de farinha comunitária. Tudo muito bom, não fosse o fato de que o lugar carece de água por perto. Vida dura para essa gente veredeira que tinha oásis no quintal. “Aqui é meia-vida. Lá a gente tinha vida e meia”, protesta Zé Luiz, morador que agora precisa buscar água em carro-de-boi. Bateu necessidade, ele pega dois boizinhos carreiros, põe quinze baldes de 20 litros no carro e ruma para a Vereda Gentil, a algumas léguas de seu lote. No assentamento São Francisco, as distâncias são esquisitas. A água está longe e o povo está perto. Marcelino, outro assentado, admira-se: “O pessoal estranhou morar tudo pertinho, né? É tudo morador acostumado a ter vizinho a 10 quilômetros de distância.” Otaciano das Neves, ou Tácio, é um que não se azeda. Nasceu em Januária, morou cinco décadas em área que hoje é do parque e agora divide a vida entre o assentamento e a cidade de Formoso. “Toda a vida vou rompendo rumo. Só paro onde o sol entrar. Porque o senhor sabe: essa vida onde nós tá é emprestada...” Sorridente sempre, Tácio é homem de festa, de música. Toca viola, violão, sanfona, caixa, só não arriscou a rabeca. “Quando tem festa, o povo não deixa eu ficar quieto. Amanhece o dia e eu inda tô lá tocando violão com umas três cordas. O resto já rebentou. E o povo dançando.” No Gerais, o povo dizia que violeiro, para ser bom, tinha era que fazer pacto com o Diabo, para os dedos esticarem e o pescoço da viola afinar. Seu Tácio, sério, garante que nunca mexeu com essas coisas. E, repetindo Riobaldo sem saber de sua existência em livro, matuta: “Moço, Diabo, se é que existe, eu nunca vi, nem quero ver. Acho que Diabo são as proezas que a gente ruim que faz.” Seu Tácio é a prova: sertão existe mesmo onde já não existe. Nem que seja em lote de reforma agrária, longe de vereda. Pode durar pouco, até a próxima geração, até o primeiro poste de luz elétrica. Mas certas coisas têm o insondável poder de resistir, especialmente nestes Gerais. “Sertão é isto, o senhor sabe: tudo incerto, tudo certo.” Serra das Araras é vila remota que em trezentos anos nunca deixou de sê-la. Embora único ajuntado de casas na estrada entre Chapada Gaúcha e o Rio São Francisco, pouco recebe visita. A não ser quando tem festa. Quando tem, sobretudo, a festa de Santo Antonio, que acontece em junho e aglomera o povaréu todo do norte de Minas, de romeiros a mascates. No resto do ano, o casario de barro adormece sob o sombra do chapadão que lhe dá o nome. Três vezes por semana, dois carros-de-boi fazem a limpeza do lixo. E médico, só na sexta. “Nessa Serra aqui o passo tá devagar demais”, queixa-se Romão Rodrigues. Chegado há vinte anos no povoado, veio farto da vida sem notícias na Vereda da Larga, lugarejo ao norte, metido num vão, murado de morro. Paragem de grande beleza, mas Seu Romão desgosta. “Não acho bonito, não. Lugar acidentado, não tem saída. E a sorte não gosta de cair no buraco. Lugar melhor de vida é no vago aberto.” Agora, aos 72 anos, o ofício de Romão é fazer canção, escrever poema, contar estória. “Eu conto é muita mentira. Localizo aqui no meu juízo e invento tudo. Quem quiser, que acredite.” Para artista assim, a Serra das Araras é muito melhor palco que a vereda, mesmo com um punhado de moradores por platéia. Romão está perfeitamente adequado à vida urbana, mas não desaprendeu as lições ensinadas pelos reveses do sertão. “O sujeito pode nascer na boa vida e, se der um contrapasso, ela fica ruim. Se nasce na vida ruim, não tem como ficar pior. Mesmo se a vida melhora e depois dá um contrapasso, ela voltou ao que era.” E resume: “A sorte passou na tua porta, ela te chama, tem que ir.” Hoje viver não é mais tão perigoso quanto era há cinqüenta anos. Ao menos não nos Gerais, outrora famigerada terra de jagunço e de assunto resolvido no cano da pistola. Felícia, esposa de Romão, explica como perdeu o pai: “Ele morreu matado pelo sogro na beira do Rio Pardo. A segunda mulher dele, minha madrasta, tava tendo caso com o cunhado e meu pai quis ir s´embora dali. O pai dela acabou matando ele. E a mulher inda ficou com o cunhado.” “O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado!”, avisa o jagunço Riobaldo em Grande Sertão: Veredas. Jagunço, veja bem, não é cangaceiro. Esse é coisa da caatinga nordestina, bandido sem dono que se ajunta em bando para roubar e matar. Jagunço é funcionário, soldado de coronel rico de terra e de gado. Como Riobaldo e Diadorim. E desses os Gerais tinham de sobra, agrupados para guerrear por disputa de território ou de honra sob o mando de chefe temido e respeitado. Serra das Araras ainda conta estórias de Antônio Dó, coronel da cidade de São Francisco que perdeu gado e parente em briga de terra, reuniu uns vinte jagunços e jurou vingança. Citado por Guimarães Rosa em algumas páginas, Antônio Dó espalhou fama por todo o norte de Minas nos princípios do século 20 enquanto fugia de polícia e de fazendeiro inimigo. “As armas dele era tudo enfeitiçado”, conta Anísia Macedo, moradora de povoado próximo a São Francisco e filha de Martinho Berto, um dos jagunços daquele bando. “Bala nenhuma acertava ele.” Célebre também era a bolsa que Antônio Dó carregava recheada de mandinga, feitiço que, dizem, lhe fechava o corpo. Verdade ou não, ele só morreu quando lhe tiraram a capanga, por intriga de mulher e de gente do próprio bando. Conta Anísia: “Deu meio-dia, ele sentou pra tomar café e deram com a mão de pilão na cabeça dele. Depois, todo o mundo atirou, meu pai também. Não tinha lugar pra um dedo de bala.” Martinho Berto largou essa vida em 1929, com a morte de Dó, mas sangue jagunço não é coisa que deixa de correr assim tão fácil. “Ele era do mundo, andeiro. Tomava a muié dos outros e ia s´embora. Se ela não gostasse, inda batia nela”, lembra Anísia. O ex-jagunço viveu como um dos últimos exemplares de sua espécie até os anos 80. Filhos, Anísia sabe de 19, com diversas mulheres. Jagunço hoje é bicho extinto nos Gerais. Começou a morrer mesmo antes da soja, antes do asfalto. Não sobrou nem ilha, como o cerrado. Só lembrança em livro e na memória do povo mais antigo. O Grande Sertão então acabou? Ainda não. “Sertão: estes seus vazios. O senhor vá. Alguma coisa, ainda encontra.” Não se esqueça: siga sempre o rumo do norte. Quando as estradas começam a esvaziar-se de gente, é aí que passam a encher-se de sertão. No reino das veredas vive ainda a prosa de Dona Ermina, a viola de Seu Tácio e as estórias de Seu Romão. Intactas, a fala, a gentileza e a sabedoria sertanejas. E, sobretudo, a memória do sertão. Mais uma vez, Riobaldo: “Sertão: é dentro da gente.” |