Reportagem publicada na revista Florense em junho de 2009. Fotos aqui.
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O caminho do meio
De todos os caminhos possíveis entre um ponto e outro do planeta, nem sempre o mais curto é o melhor – a não ser, é claro, que você esteja com pressa. Mas a pressa não combina com a Ásia. Muito menos com a terra do dalai-lama. No caso da estrada que separa Lhasa, capital do Tibete, de Katmandu, capital do Nepal, trata-se não só do caminho mais longo entre as duas cidades como também o mais difícil, onde o frio, o isolamento e a altitude são transtornos permanentes. E, ainda assim, é o caminho a ser feito. Chama-se oficialmente Friendship Highway, tem 900 quilômetros de extensão e foi aberta ao turismo apenas em 1992, o que lhe valeu durante muitos anos uma fama de “estrada proibida”. O acesso ainda é fortemente regulado pelo governo chinês, uma vez que só é possível percorrê-la se você estiver dentro de um grupo de excursão previamente aprovado pelas autoridades. Jamais sozinho. O Tibete, não nos esqueçamos, ainda é um território ocupado, cujo líder máximo, o dalai-lama, vive oficialmente no exílio. Por que, então, trocar um confortável voo de apenas uma hora por cinco dias de profundo isolamento, sacolejando num jipe por uma via de chão batido, tendo todos os passos rigidamente controlados e ainda sofrendo com o frio e a escassez de oxigênio? Ora, porque qualquer voo não trará a experiência inesquecível de penetrar o coração do Himalaia e de cruzar uma das poucas regiões do planeta onde a globalização ainda não chegou. A travessia do Himalaia é uma das grandes aventuras do mundo. E que, felizmente, já pode ser feita com certa dose de conforto. A estrada pode ser percorrida nos dois sentidos. Caso Lhasa seja o ponto de partida (e é por onde vamos começar), é fundamental gastar pelo menos três dias de aclimatação. A capital tibetana fica a 3650 metros de altitude. Sobreviver a eles já é um bom começo para suportar os arrepiantes 5 mil metros que virão durante o trajeto até Katmandu. Não estranhe se, nas primeiras horas, a cabeça latejar, as narinas arderem e o estômago revirar. Os efeitos iniciais do mal de altitude não são nada gentis, e podem tornar-se ainda mais severos se você não tomar as devidas precauções, como beber muita água e evitar movimentar-se demasiado. Difícil mesmo é evitar a euforia, pois Lhasa é um dos lugares mais fabulosos da Ásia. A primeira imagem para quem chega à cidade, encravada no alto de uma colina, é a do Potala, o palácio-monastério em que vivia o dalai-lama antes de a invasão chinesa, em 1959, forçá-lo ao exílio na Índia. O edifício, construído no século 17, é um dos mais bonitos do mundo, cheio de tesouros que, na pressa, o líder tibetano teve que deixar para trás. Centro político e religioso para os 2 milhões de habitantes deste território do tamanho de duas Franças, Lhasa é um lugar que todo tibetano sonha um dia conhecer. O principal foco de peregrinação é o templo de Jokhang, tido como um dos mais sagrados para o budismo tibetano. Gente de todos os cantos do Tibete costuma concentrar-se aqui, onde gasta horas dando voltas em torno do templo, entoando mantras e girando rodas de oração. A grande maioria são camponeses, cujo estilo de vida parece ter mudado muito pouco nos últimos 400 anos: vestem roupas tradicionais, não entendem uma consoante do que você diz e ainda se assombram quando encontram um ser humano (este que vos escreve, no caso) repleto de pêlos pelo corpo. Por mais de uma vez, fui cercado por um grupo de locais que se riam inteiros quando me puxavam a pelagem do braço. Triste é perceber como Lhasa está cada vez menos tibetana e cada vez mais chinesa, dado que nas últimas décadas o governo de Pequim tem se empenhado em minimizar os traços de cultura local na cidade, parte de uma longa e bem arquitetada estratégia de dominação. Por isso, ao fim de três dias, faz-se mais do que necessário tomar o rumo do sudoeste, em direção à Cordilheira do Himalaia. È lá que está o Tibete mais autêntico. Antes de topar com as montanhas, a estrada rasga o vasto platô que ocupa todo o território tibetano, um deserto gelado e estéril, suspenso a mais de 3 mil metros de altitude. A vida aqui não é fácil: a sobrevivência depende do cultivo de cereais e da criação de animais como ovelhas, cabras e, sobretudo, iaques. Esta espécie de boi peludo é usada para os fins mais diversos, mas o principal talvez seja ajudar os tibetanos a suportar o vento glacial que sopra durante quase todo o ano, fornecendo pêlo e couro para as roupas e gordura para a alimentação. Não há dia em que eles não tomem uma tigela de chá de manteiga de iaque para aquecer-se. Considerando que esta se trata de uma das regiões mais remotas do mundo, não espere encontrar hotéis cinco-estrelas. A hospedagem, felizmente, não é em choças camponesas – há vinte anos, ainda era –, mas os quartos são o máximo em simplicidade. Dê-se por feliz que o aquecimento interno e o banho quente já chegou a estas bandas. Seja como for, a experiência gratifica qualquer esforço. Existe uma beleza selvagem e inóspita no Tibete que tira qualquer mortal do sério. Há geleiras ao alcance das mãos, estepes a perder de vista emolduradas pelos picos nevados, um lago de águas profundamente azuis (chamado Yamdrok) e dezenas de vilarejos absolutamente tibetanos perdidos no meio do nada. Um dos momentos mais marcantes da travessia é a visita a monastérios. Ao longo da Friendship Highway, há quatro deles, onde os monges continuam levando a mesma vida de mil anos atrás, inteiramente dedicada a esta fascinante mistura de devoção a Buda com crenças em antigos espíritos locais, uma fusão que está na raiz do budismo tibetano. Com um pouco de sorte, dependendo do horário, é possível descobrir os monges em pleno exercício dos poderes da mente. Todo dia, dezenas deles reúnem-se no pátio para travar acaloradas discussões sobre a existência e chegar, assim, a alguma conclusão sobre os mistérios da alma humana. No quarto dia da travessia, já perto da fronteira com o Nepal, uma surpresa: o monte Everest. Ele está logo ali, à esquerda da estrada, a poucos quilômetros. Se as nuvens não atrapalharem, pode-ser ver com perfeita nitidez a ponta nevada da montanha mais alta do mundo. Impossível não perceber que há mesmo algo de muito especial naquilo que os tibetanos chamam de Qomolangma, “Mãe do Universo”. Para o povo que vive aos pés do Himalaia, aliás, as montanhas são tidas como a morada de seus deuses, portanto lugar dos mais sagrados. Não é por acaso que os tibetanos costumam levar seus mortos ao alto dos picos para que eles sejam devorados pelos abutres. É uma maneira, segundo eles, de espalhar seu espírito. Mais perto ainda da divisa com o país vizinho, depois de uma curva, surge a visão definitiva. A mais assustadora, a mais bela, a mais sagrada: o Himalaia, bem diante de você, em toda a sua magnífica grandeza. Este é o passo Lharong La, situado a 5124 metros de altitude, um ponto privilegiado que permite ficar cara a cara com a mais alta cordilheira do planeta. Pena que não se possa contemplá-la por muito tempo. O mesmo vento gelado e furioso que sacode as bandeirinhas de oração coloridas, responsáveis por espalhar mantras pelo mundo, em poucos minutos começa também a congelar os ossos e fazer a cabeça zunir. Com o corpo igualmente trêmulo de frio, reduzido à sua mera condição de mortal, você finalmente compreende o insondável poder destas montanhas. Não espanta que tantas divindades do budismo e do hinduísmo tenham aqui seu endereço fixo. A viagem segue pelo coração da cordilheira, agora numa vertiginosa descida rumo a Katmandu. Repare na paisagem: a aridez começa lentamente a ganhar focos de vegetação até se tornar um bosque denso. Explica-se: o Himalaia é tão alto que as poderosas chuvas de monção que castigam anualmente a Índia não conseguem passar para o outro lado. É por isso que o Tibete é tão árido, enquanto que a encosta sul das montanhas se exibe toda úmida e verdejante. Jangmu, cidade fronteiriça, já está encravada no verde. Meio tibetana, meio chinesa, um pouco nepalesa, Jangmu é a única conexão por terra entre a China e o Nepal. Todo o mundo passa por aqui, onde a Friendship Highway, estreita e cheia de curvas, se transforma na rua principal do lugarejo. Ou pelo menos tenta passar, já que os caminhões nepaleses trafegam na mão inglesa e os carros chineses, na francesa. A hora do rush por aqui deve ser uma das mais infernais do planeta. Cruzada a ponte que liga os dois países, a estrada corre por dentro de um desfiladeiro deslumbrante, cheio de cachoeiras e arrozais. Nem parece que a estepe seca e fria do Tibete ficou poucos quilômetros para trás. Além da paisagem, também é o povo que muda: sua pele fica mais escura e as feições, mais indianas. No lugar dos iaques, surgem os búfalos. E as vacas, sagradas para o hinduísmo, fazendo o que bem entendem: atrapalhando o trânsito, revirando o lixo e atividades afins. Katmandu exerce um fascínio radicalmente diferente do de Lhasa. Caótica e exótica, a capital nepalesa tem muito de indiana, mas não dispensa um charme todo próprio. A cidade fica no centro de um amplo vale, cercada de cidades medievais como Patan e Bakhtapur e de templos como o budista Swoyambunath, repleto de macacos, e o hinduísta Pashupatinath – este um desconcertante local de cremação, onde os corpos são queimados em honra a Shiva à luz do dia. Travalínguas à parte, ambos os templos são imperdíveis. Na capital nepalesa, a religião está por toda parte. Não é muito difícil, nas ruas, cruzar com alguns saddhus, homens santos que perambulam em troca de comida e de uns trocados arrancados a cada fotografia que você tira deles. Existe até uma deusa viva, chamada Kumari, que encarna sempre numa menina antes da primeira menstruação. A deusa vive num templo no centro de Kathmandu, onde duas vezes por dia faz uma rápida aparição na janela, de poucos segundos de duração, para devotos e turistas. Ao fim do longo caminho através do Himalaia, a descoberta de deuses vivendo entre os homens talvez não seja mais razão para espanto. Tudo é tão surpreendente por aqui que a mente e os olhos já não duvidam de mais nada, nem mesmo que aquelas montanhas sejam povoadas por toda sorte de divindade. Faça o teste: em Kathmandu, vá a Nagarkot, lugarejo próximo situado num ponto mais alto do vale, de onde se tem a melhor vista da cordilheira. Ela estará bem ali, fantasmagórica, suspensa sobre as nuvens. Então, todo o sofrimento da travessia terá valido a pena. E tudo fará sentido. |