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Retratos falados ENGLISH |
Os de cá, os de lá e os de todo o lugar Primeiro foi o espanto. Do mar, rasgando sargaços, chegaram naus imensas carregando gente tão estranha quanto esplêndida. Eram homens, todos, e traziam o rosto tapado de pelos e a pele de panos. Aportavam fétidos e infectos, dados os longos meses através do oceano, mas portavam coisas bonitas e incomuns, como pentes, espelhos e facões. Por um momento, os de cá pensaram que gente assim só podia ser coisa dos deuses. Os de lá, por sua vez, ainda a bordo viam a praia encher-se de um povo rubro e reluzente, despido de toda roupa, culpa ou pecado. Viviam na mata, e da mata tiravam tudo quanto lhes bastasse, fossem frutos carnudos ou carnes suculentas que toda flecha pudesse acertar. Parecia o paraíso, tamanho o gozo e tal a inocência daquela vida pagã. Alguém achou, por um momento, que deviam ser anjos. Anjos não eram, logo se soube, pois também eram dados à guerra e, pior, mastigavam carne humana. Ao mesmo tempo, representavam sério entrave ao avanço sobre aquela terra recém-achada e tudo o que de valioso ela pudesse conter. Passado o assombro inicial, instalou-se o atrito. Os de cá tratavam de manter-se vivos ou livres, providos de setas e tacapes e também da mata que lhes servia de fortim vegetal, permeável apenas aos que soubessem compreendê-la. Os de lá, embora menos numerosos, traziam arcabuzes, epidemias e jesuítas. Quem não morria por obra de bala, rendia-se à varíola. Quem vivesse, ou gastava a humanidade carregando toras de pau-brasil ou perdia a alma para a cruz dos missionários. Mas houve também a paz das redes de dormir. Já nos portos as índias ofereciam-se aos brancos em troca de presentes, para depois na maloca entregar-se a eles na esperança de emprenhar – antes mãe de mameluco que coisa nenhuma. Sem brancas com quem casar, os de lá também se despiam de panos e culpas, movidos pelo desejo duplo de saciar a carne e povoar a terra. Alguns chegaram a constituir família, de muitas esposas e numerosos filhos, atados a aldeias inteiras por laços de parentesco. Por toda a costa, ventres bugres geraram gente nova. Eram já crias diversas, nem de cá, nem de lá. Não se reconheciam na mãe, que mãe índia por aqui se rejeitava, e tampouco desfrutavam do respeito do pai, que os tinha por impuros. Por torná-los alguma coisa, os padres trataram de ao menos fazê-los cristãos. Entre uma missa e outra, entretanto, fizeram-se também raça inédita, ainda por lavrar, que não via destino senão inventar-se com tal de existir. No início viviam feito os de cá, que era a única vida que a terra agreste permitia. Com o povo da mãe, aprenderam a roçar o milho, a depurar a mandioca, a tomar banho de rio, dormir em rede, trançar cestos e falar tupi. Tinham também olhos, ouvidos e narinas de bugre, já talhados para a mata, e ainda meninos engrossavam as bandeiras que alargaram as fronteiras da colônia à cata de ouro e nova indiada para submeter. Do pai, herdaram saberes de além-mar, que muito ajudavam no amansar da terra e dos gentios: pilavam o milho no monjolo, cozinhavam em tachos de metal, tiravam carne e leite dos bois e forjavam o ferro no fabrico de machados, enxadas, facas e facões. Não tardaram também para trocar a palha das malocas pelo adobe e pela taipa. E, em pouco tempo, tornaram vilas as aldeias que habitavam. Novo povo, novos sertões Assim foi no primeiro século. Onde quer que houvesse matas de pau-brasil por derrubar ou bugres por apresar, proliferavam mamelucos. Foi assim também nas terras tórridas e férteis do Nordeste, mas ali, onde os canaviais grassaram sobre o massapê, novo povo se fez necessário. Vinham igualmente de além-mar, porém de outras plagas, tão quentes quanto as daqui, e por isso suportavam melhor o ofício que lhes era imposto nos engenhos açucareiros. Ali não houve paz alguma, mas houve a cruza, e também as senzalas se fizeram criatórios de outra gente. À mãe cunhã, útero multiplicador de mamelucos, somou-se ali a africana, parideira de mulatos, e juntas foram a matriz sobre a qual a primeira semente lusa germinou. Nos engenhos, os filhos nasciam pardos e escravos, e assim morriam, mas não sem antes desmanchar os nós que porventura ainda os atassem à tribo original. Por não se entender com seus pares, iguais na pele mas diversos no falar, aprenderam o português do feitor. Quando livres, misturavam-se aos mamelucos e faziam-se quase índios eles também, que modo melhor de criar sustento nesta terra ainda era aquele aprendido dos nativos. Também fizeram-se cristãos, mas guardaram na alma a lembrança de antigas divindades importadas nos tumbeiros. Com elas, reinventaram nos terreiros a África que lhes restava. E, quando a costa se fez pequena, houve que apossar-se do sertão. Nordeste adentro, para longe dos canaviais, viviam índios parrudos e ferozes, que, por não serem tupis, chamavam-nos de tapuias. Estes, quando não podiam resistir, terminavam por mesclar-se aos mamelucos que ocupavam a caatinga em busca de pasto para o gado. Onde as boiadas pisavam, abriam-se estradas. Onde pousavam, nasciam vilas. E assim vastas sesmarias retalharam o sertão a serviço dos engenhos, aos quais forneciam carne, couro e bois de serviço. Ali os homens se fizeram vaqueiros ou senhores: uns encourados para a lida, outros entocados no comando de um poder arcaico, em quase tudo feudal. Caboclos ambos, compadres na seca e cúmplices do ermo que os tornou, antes de tudo, uns fortes. No sul, acolá da Serra do Mar, mamelucos paulistas partiam ao encontro de outros sertões. Como não tinham cana nem pasto do qual tirar proveito, fizeram do mato virgem o território e da preia de bugres a profissão. Iam buscá-los nas missões, já amansados pela cruz, ou nas tribos, ainda gentios, e para tal foram o mais distante que puderam. Falavam tupi, e em tupi foram nomeando as serras e os rios com que topavam. No caminho, se topassem também com ouro ou diamantes, tanto melhor. E assim foi: das barrancas do Rio das Velhas, onde se viu o aluvião original, multiplicaram-se os arraiais mineradores. Tantos foram que ali se lavrou, a muitas léguas da costa, a mais resplandecente civilização desta terra. Ali se esbarraram sertanejos e paulistas, uns vindos do norte, tocando os bois, outros do sul, rasgando as matas. Por serem os primeiros, fizeram-se ambos donos das terras, mas não sem certa luta. Brancos também vieram, tanto os que já cá estavam quanto os que depois chegaram, febris e aventurosos, refazendo o caminho dos avôs. E houve pretos também, muitos, importados dos canaviais daqui e das tribos de lá. Os daqui, por falar língua lusa, aportuguesaram as jazidas, desbancando o tupi a não ser na toponímia. No miolo da colônia, todos se encontraram: pretos, pardos, brancos, bugres e caboclos. Ensinaram-se saberes uns aos outros e fecundaram-se nos catres com as cores das mais diversas. Por já não ser mais coisa alguma, começaram a sentir-se um povo só. Do nó inicial à amálgama final Minas foi o nó que primeiro atou o Brasil. Chegava gente de toda parte, e quase toda parte da colônia parecia empenhada em alimentar ou nutrir-se da riqueza que jorrava das jazidas. Inclusive o extremo sul, antes apartado dos destinos nacionais, agora se integrava ao centro e ao norte via extensa rede de estradas tropeiras. Ali, nos pastos austrais, outras misturas haviam tingido a gente campeira de sangue castelhano e guarani, que, por não ter maior recurso que extrair da planície infértil, fizera-se perita no amansar do gado xucro deixado pelos jesuítas. Os paulistas lá chegaram também: arrebanharam a vacaria, empregaram a gauchada e conectaram o pampa às minas e ao resto da colônia, carregando mulas, cavalos e bois. Quando o ouro nas minas acabou, alguns ali ficaram, misturados e miseráveis, enquanto outros repovoaram os vales ao sul. Voltaram todos à vida mameluca, que era a que conheciam, mas agora falantes do português e adubados com gene negro. Onde se instalaram, dedicaram-se a roçar os morros e as várzeas para dar lugar às lavouras e ao pasto do gado. Fizeram-se caipiras – palavra tupi para “cortadores de mato” – e, com tal de superar as penas impostas pela lida diária, reafirmaram-se cristãos. Ergueram vilas, igrejas e capelas em nome dos mais diversos santos, e ali encontraram não só a fé comum como também os laços que os atavam uns aos outros. Nas festas e nos adros, faziam-se ainda mais caipiras. E ainda houve o norte. Pela boca do Amazonas, os portugueses meteram-se na mata e navegaram igarapés à cata de cacau, baunilha, pimenta, castanha e o que mais lhes ocorresse chamar de drogas do sertão. Para tal, valiam-se da indiada nativa, que eram os pés, as mãos e os olhos que tudo conheciam. Lá também os brancos se misturaram, fazendo-se caboclos, e ainda os bugres entre si, por força civilizatória. Fosse de que tribo viessem, no cativeiro se confundiam, imprecisos, e ainda aprendiam a rezar missa e falar tupi – não o tupi deles, mas o dos mamelucos, língua geral de posse e conversão. Os índios originais, os de cá, fugiram para as cabeceiras, mas ali os caboclos igualmente chegaram, ainda que tardios, atrás dos seringais. Com eles vieram sertanejos, fugidos da seca, até encostar-se nas fronteiras. E ali também se acaboclaram: aprenderam a roçar a terra no vaivém da vazante, a morar em palafitas, a caçar com flecha e a pescar com arpão. Naquela altura, já quase ninguém, por todo o território, sabia-se de cepa alguma. Eram todos de cá, netos de avós incertos nos quais viam apenas uma vaga reminiscência de origem. Nem brancos, nem pretos, nem índios, e esses todos ao mesmo tempo. Novos brancos depois vieram, falando línguas diversas, destinados a espalhar-se pelas lavouras paulistas ou pelos vales do sul. Trouxeram saberes inéditos, que muito contribuíram para o progresso da nação, e alguns replicaram nos trópicos a vida que lá na terra tinham. Branquearam a população, é certo, mas muitos também se mestiçaram. E assim seguirão, que é o destino deste povo: destituir-se das matrizes primárias para converter-se em amálgama final, ponte entre o que nunca foi e o que talvez será. Brasileiros, sem mais. |