Xavier Bartaburu
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BRASIL INVISÍVEL
Uma viagem pelo Brasil dos brasileiros. Textos de Xavier Bartaburu e fotos de Valdemir Cunha.



Também deste livro:
Os de cá, os de lá e os de todo lugar



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Salvaterra, PA.

“Minha mãe diz que com sete meses eu chorei na barriga dela”. E quem é que duvida? Não na comunidade de Santa Luzia, quilombo antigo metido nas brenhas do Marajó, onde Cipriano é cabra predestinado, embaixador dos encantados no mitigar de tudo quanto é dor das carnes e do espírito. “Cirurgião”, é como ele se apresenta. Chame também de pajé, chame de xamã, só não de feiticeiro. “Feiticeiro é os caruanas”, ele esclarece. A eles é que Cipriano empresta o corpo na pajelança pra operar a cura, desfazer o feitiço. Funciona assim: “Embaixo da terra tem uma cidade, onde vivem os caruanas. Quando faz a prece, a gente sente a aproximação. Sente a umidade que vem de baixo, tomando conta”. Aí, é maracá de índio, reza de cristão, tambor de negro, e Cipriano no breu, cheio de cinta agarrada ao corpo, mergulhado naquele sono mágico que faz o sujeito se esquecer de quem é. Tem quem jure que já viu Cipriano lambuzar o braço de pinga e tacar fogo, sem sentir nada. Dizem também que ele chupa a dor com a boca e cospe depois, e no meio do cuspe vem inseto, vidro, sangue. Lá na Santa Luzia, todo o mundo confirma: não tem quem chegue carregado na encanteria desse homem e depois não saia caminhando. Caruana tem poder. “Sem ele, a gente não é nada”.


Serra das Araras, MG.

Veredeiro de nascença, prosador de profissão, seu Romão, de lugar bonito, parece que não gosta não. Se gostasse, porque é que havia de ter saído lá da Vereda da Larga, paragem formosa carregada de buritis, pra vir morar na Serra das Araras, ajuntado de casas numa beira de chapadão? É que a vereda, ele explica, fica metida num vão, grota murada de morro de que até Deus por vezes se esquece. Grande Sertão, norte brabo, onde Minas já quase deixa de ser mineira pra virar baiana. “Não acho bonito, não. A sorte não gosta de cair no buraco. Lugar mió de vida é no vago aberto”. E foi assim que, cinquenta anos de vida passados, seu Romão largou a Larga e se tocou, com a esposa Felícia, pra Serra das Araras. Não que seja vila feiosa, pelo contrário: é localidade de grande boniteza, dessas que a gente nem acha que existem mais. Mas, pra seu Romão, conversadeiro que só, o bom daqui é que sempre tem com quem se prosear. Aí, granjeou fama de contador de estória e fazedor de poema. “Eu conto é muita mentira”, graceja. “Localizo aqui no meu juízo e invento tudo. Quem quiser, que acredite.” Plateia, mesmo, nem tem muita, que a vila é pequena. Salvo em dia de festa como a de Santo Antônio, quando o lugarejo empacha de gente, seu Romão recolhe aplauso e dona Felícia, dançadeira de são-gonçalo como poucas, enche de felicidade o prosador. “Muié é um trem danado. Se ela gosta do homem, ela dobra ele”.


Porto Velho, RO.

Dizem que foi o inferno. Era mato, chuva, bicho, índio, mosquito, e ainda aquele calor dos diabos, num aperreio infindo que, quando não matava, consumia o sujeito até comer-lhe as carnes. Mais de seis mil homens morreram na construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. E o pai de Dionisio não foi um deles. Ainda bem. Charles Nathaniel Shockness veio ainda moço, arrancado pela necessidade do paraíso onde vivia, uma ilha bonita nas Antilhas chamada Granada, e aqui conheceu o demônio em forma de selva. Foi em 1910. Com ele chegaram muitos, de outras ilhas, negros todos, batizados de “barbadianos”. Quem não morreu, ou voltou pra casa ou acabou ficando. Charles ficou, e fez da ferrovia profissão. Dele e do filho. Trabalhou na Madeira-Mamoré por mais de quarenta anos, Dionisio quase o mesmo tanto. Esse começou menino, com doze anos só, e antes de criar bigode já posava de maquinista entre Porto Velho e Guajará-Mirim. Orgulho maior desse homem é ter conduzido tudo quanto era locomotiva a vapor que já faiscou sobre aqueles trilhos. Nem quando aposentou, nem mesmo quando a Madeira-Mamoré acabou e o mato começou a comer a sucata, Dionisio Shockness largou daqueles trens. Com o que sobrou, foi lá, montou museu, refez os trilhos, botou locomotiva pra apitar de novo, nem que fosse pra levar turista ou adiar o esquecimento. Na ferrovia da morte, pai e filho encontraram a vida.


Alto Rio Moa, AC.

Tem de um tudo onde a dona Rita mora. Tem água boa de beber, tem caça do mato, tem rocinha pra plantar milho, mandioca, banana e feijão e casa de farinha pra fazer beiju. Até prainha no quintal a dona Rita tem, quando o Rio Moa na vazante se recolhe e a areia fabrica, no pé da casa, um pequeno litoral. Tevê ela não tem, mas tem a do vizinho, uma preto-e-branco que ele deixa a vila inteira assistir na hora da novela. E telefone, veja só, até isso lá já chegou: orelhão amarelinho, bem do lado da casa dela, orgulho do lugar que o povo fechou com cerca, pras vacas não estragarem. “Tenho tudo de que preciso aqui”, ela diz. Só não tem panela, né, dona Rita? Aí, carece de se ir até a cidade, e disso ela não gosta muito não. Se pudesse, ficava só ali, naquele povoadim bonito e sem nome no sopé da Serra do Divisor, bem onde a borracha inventou um estado e o Brasil se fez mais ocidental e amazônico. Mas a dona Rita é cozinheira arretada: sem panela, não fica. E, vez ou outra, até se atreve a sair daquele fim de mundo, extremidade oeste da nação, só pra aumentar a coleção de caçarolas. Viaja doze horas rio abaixo até o porto de Japiim e mais quarenta quilômetros de estrada até Cruzeiro do Sul. Depois faz tudo de volta, com mais uma panela pra enfeitar a parede da cozinha. Que nem troféu.


Painel, SC.

O senhor respeite, que de pinhão seu Tonho entende. Bote aí uns cinquenta anos, ou mais, trepando em araucária pra catar pinha e tirar pinhão. Hoje ele quase não vai, que a idade fraqueja a carne e o serviço é arriscado, mas um pinheiro ou outro ainda ele visita. E sobe no jeito antigo: armado de facão, cavando escada no tronco e ganhando altura, na unha e no pé, até alcançar a copa. Aí, pousa que nem gralha nos galhos e empurra as pinhas com vara de bambu. Tem as que debulham, explosivas, quando chegam ao chão, espalhando pinhão pra tudo quanto é lado. Fica pra bicharada: vem gralha, vem cutia, papagaio, macaco, esquilo – de pinhão, não tem quem não goste. O povo da serra também adora, tanto é que come de tudo quanto é jeito. Tem o pinhão que é assado na chapa do fogão, tem o que é moído pra virar paçoca e tem também o sapecado nos galhos secos da araucária, chamuscado em fogaréu. Até cru o povo engole. Mas o melhor, pro seu Tonho, é o pinhão no borralho, aquele que queima “no rescaldo da cinza”, em lenha que também aquece a casa. “Ele primeiro cozinha pra depois assar”. É tanto pinhão que dava até pra enjoar. Mas, pro seu Tonho, quando acaba a temporada, o que mais dá é saudade. Aí, toca esperar o frio bater e o céu encher de papagaio: é sinal de que já tem pinha no pé. Como diz a dona Teca, mulher do seu Tonho: “É só dar uma esfriadinha que já dá vontade de sair pra pegar pinhão no mato”.


Vale do Catimbau, PE.

Menino esperto, o Vaniel. Nove anos de idade e já parece gente grande. Manda até nos irmãos mais velhos. Em casa, não tem serviço em que ele não goste de participar. Faz até questão. Encanga os bois no carro, ajuda a mãe no fabrico do beiju e ainda cuida das cabras, que leva com o pai, dia sim, dia não, pros lugares de comer, rasgando a caatinga feito vaqueiro dos bons. Depois, no outro dia, ajunta os bichos todos de novo no curral, pra tirar o leite que depois vai ser misturado com a farinha, pra virar papa. “Quando tem muito leite, mainha faz queijo”, ele acrescenta. Tudo isso é de manhã, pois à tarde o Vaniel vai pra escola. E vai de ônibus, que esse lá já tem no lugarejo onde ele mora, o Brocotó. Não faz muito tempo, pra sair daqui, era só de jegue. Também não tinha tevê, nem parabólica. Nem mesmo a cisterna que hoje bota água na mesa da família, essa tinha. Luz era só de candeeiro e o dormir se fazia em cama de palha de ouricuri. Agora o Vaniel dorme em colchão, veja só. Quando é que os pais dele iam imaginar uma vida assim? No Brocotó, melhorou demais a qualidade do sono e do sonhar. Menino de sorte, o Vaniel.


São José dos Ausentes, RS.

Sopre ou não o minuano, lá vai o Eliseu. Cedinho ele acorda, todo dia, pra campear as coxilhas cuidando da gadaria, arrumando cerca e o que mais a lida na estância reclamar. Frio faz sempre, sobretudo de manhã, que a terra aqui é das mais glaciais neste país, pampa dependurada acima dos mil metros onde até a neve às vezes forra os capinzais. Mas quando chega do sul o minuano, aí é o inverno no que ele tem de mais estorvador. Pois esse é vento que areja cortante, zunindo nos campos e golpeando nas carnes. “Parece até que a gente trabalha dentro de uma geladeira”. Mas o Eliseu não se aperreia: vai lá, tiritante, fazer o que tem de ser feito, que é pra garantir o churrasco de todo dia. Afora a lida, o guri ainda arranja tempo pra ajudar o pai no fabrico do queijo e faz uns bicos servindo de guia pros gringos, com quem aproveita pra incrementar o inglês. Tem também a música, divertimento maior. Volta e meia se acha o Eliseu num cetegê, fazendo lá os entreveros dele, misturando rock e chamamé. “A gente tem que modernizar, né? Não vê os sertanejos?”, justifica. Por vezes, na lida, montado em cavalo, ele gosta de cantar as músicas que compôs. Canta pra si, pois lá, nos ermos da estância, ninguém ouve nem acompanha. Salvo quando sopra o minuano, que aí é vento e Eliseu fazendo coro.


Garibaldi, RS.

Quando não era tico-tico, era tatu. Ou porco-espinho. Lagarto, às vezes. Tudo com polenta. Na casa da dona Odete, quando criança, fauna local era refeição. Coisa dos avós italianos que, com tal de sobreviver na nova terra, inventaram receita com tudo quanto era bicho que se pudesse comer. Quem quiser aprender, a dona Odete ensina: “O lagarto a gente deixava um dia escorrendo na água e depois fritava, que nem peixe. Já o tico-tico era sapecado na banha, com sálvia”. Ela garante que nunca passou fome na infância, mas fartura também não era algo que se visse todo dia nestes vales do sul. Vai ver foi isso, o pavor da privação, que fez a dona Odete transformar o porão de casa numa cantina, a Osteria della Colombina, onde empacha os comensais com uma comilança pra nunca se esquecer. Quase tudo ela produz aqui: vinho, grappa, vinagre, geleia, suco, pão, queijo, manteiga. O que não tem, ela manda trazer, e fica bom do mesmo jeito. Só tico-tico é que não tem mesmo, nem tatu, que isso é coisa do passado. Em vez disso, a dona Odete faz desfilar uma farta e vasta seleção de receitas que carregam no gosto e no nome o mesmo sotaque que ela deixa escapar no seu falar: polenta brustolada, carne lessa, pien, fortaia... A italianada, quando vem, diz ela que enlouquece. “Eles não acreditam que ainda exista tudo isto que nós fazemos aqui. Até choram”.


Nova Olinda, CE.

Quando o cabra chegou com a sandália na mão, pai de Espedito já sabia: era homem de Lampião. Pedia encomenda. Queria que seu Raimundo fizesse uma alpercata que nem aquela, mas com a sola de um jeito que, pelo rastro, não desse pra saber onde era a frente e onde era atrás. Assim o rei do cangaço podia escapar pelo sertão despistando a soldadesca. Pai fez e nem quis cobrar, só de medo. Mas o molde ficou. E Espedito Seleiro, que herdou o ofício, um dia catou o molde e fez sandália igual, pra vender pra fora. Vai daí que a alpercata de Lampião caiu no gosto e entrou no pé de tudo quanto é artista. Depois vieram os cintos, as bolsas, os chapéus, tudo de couro. Espedito ficou famoso, celebridade maior do Cariri. Fez roupa pra filme e pra desfile de moda e recebe encomenda até do estrangeiro. Mas coisa de que gosta mesmo, e isso ele não esconde, é produzir pra vaqueirama, essa que garantiu o de-comer do pai, do avô e do bisavô. Se pudesse, ficava só fazendo sela, arreio, cangalha, perneira e gibão. Pena que não dá, que vaqueiro hoje é bicho quase extinto na caatinga. E os que têm por aí acham que Espedito Seleiro só trabalha pros de fora. Injustiça da pior. Se vaqueiro encomendar alpercata, o cabra faz na hora. E faz com gosto. Diz até que faz melhor do que se fosse pra artista.


Vila do Tepequém, RR.

Povo lá no Tepequém deve ter achado que Januário Felismino era frouxo do juízo. Onde é que se viu cavar buraco no chão da própria sala? Tá certo que diamante, ali, naquelas lonjuras de Roraima, dá onde até Deus duvida. Mas logo dentro de casa, seu Januário? É que faz já um bocado de tempo que quase não se vê mais gema de respeito na Serra do Tepequém, desde quando o governo proibiu máquina no garimpo e deixou o povaréu nos arraiais de peneira na mão, catando pedregulho. Tem uns que ainda insistem, esses poucos que não se foram, como Januário Felismino. E aí, quando chega aviso em sonho, urge atender. Primeiro ele sonhou com onça. Uma pintada graúda, acompanhada dos filhotes, bangolando na sala de casa. Na noite seguinte, uma galinha. Branca, cuidando dos pintos todos. Januário enxergou recado: tem diamante aí. Um grande e outros menorzinhos. E cavou. Abriu um vão até fazer sumir o chão da sala, pra depois encontrar só o negrume. Pois diamante, mesmo, ele não viu nenhum. Então, encheu o oco de água, fez poço. E botou lá uns jabutis, pra garantir a janta. “Só como quando tô com fome”, avisa.


São Bento do Sapucaí, SP.

Seu Mané, quando viaja, é no “sistema antigo”. Seja milho, telha ou rapadura, leva a carga nas mulas, atada em cangalha, enchendo bruaca de couro ou jacá de bambu. Tropeiro como seu Mané, já quase não tem. Um ou outro ainda sobra no país, como aqui, nos ermos da Mantiqueira, onde estrada é de chão e alguma freguesia ainda reclama a provisão que carro nenhum é capaz de levar. Em São Bento, sobrou somente o seu Mané. “Morreram os tropeiro véio. Só eu fiquei na tradição”, ele diz. E bote idade nessa tradição: desde menino ele já era companheiro do pai no tropear, e juntos desciam a serra levando fumo e frango pra subir de volta trazendo sal. Por vezes levavam porco capado pra Campos do Jordão, num tempo em que lá ainda deixavam amarrar mula em porta de mercado. Hoje, animal nenhum entra na cidade. “Atrapaiô o gosto.” Contudo, quando chamam, Mané vai. E é sempre no Natal, pra ajudar a dar conta do tanto de leitoa que o povo requer. “Aí todo o mundo tem sede de carne, né?” Fora isso, o serviço é pouco. Tropeiro agora tem mais serventia em desfile, pra mostrar pros mais moços como era que se viajava no sistema antigo. Seu Mané mesmo vai em quantos pode, em tudo quanto é cidade da região. Leva a tropa toda, enfeitada que só, pronta pra ganhar concurso. E não é que ganha? Na sala do seu Mané, o que mais tem é troféu.


Rodeio, SC.

Montar na bicicleta não é com seu Laudir. Ele gosta mesmo é de desmontar. Imagine que, de menino, quando viu pela primeira vez uma dessas dentro de casa, nem quis provar da novidade. Esperou o pai sair pra roça, catou a magrela e meteu-se a desfazer ela inteirinha. Arrancou freio, parafuso, pára-lama, depois esfregou banha de porco no rolamento e botou tudo de volta no lugar. Pai nem desconfiou. E o que era reinação, virou profissão. Moço ainda, seu Laudir abriu oficina numa beira de estrada entre Rodeio e Timbó, que chamou de Bicicletaria Feltrin. Faz já trinta anos. Fácil não foi, que nesses vales do sul quase sempre o verão carrega enchente. Numa dessas, o homem perdeu casa e oficina. Passou anos dormindo num colchão apoiado sobre tocos de eucalipto. Um toco desses ele ainda guarda num canto da bicicletaria, pra lembrar de sempre perseverar. “Sofri feito cão na vida, mas sou feliz”, resume. Coisa de que mais gosta hoje é pegar bicicleta velha, dessas que costumava desmanchar quando moleque, e tornar nova. E nem se apoquenta quando chega criança da cidade pedindo pra pedalar. Abre logo o galpão no quintal de casa e deixa a garotada montar em tudo quanto é relíquia. Desmontar é que não. Que isso é só com seu Laudir.