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Monte Roraima
Uma ilha no céu Há todo tipo de ilhas, não necessariamente cercadas de água, e o Monte Roraima é uma delas. Quem vem da savana distingue um bloco só, rocha única e descomunal rodeada de planície por todos lados, que parece ter brotado do chão como se fosse a crista de alguma cordilheira subterrânea. É uma montanha esquisita, vale dizer, sobretudo porque, em vez de um vértice como cume, o que existe é um platô, extenso e achatado, que as escarpas íngremes suspenderam 500 metros acima do solo. Para os homens, não existe caminho que leve ao topo senão um só, e ele exige ao menos dois dias de caminhada. Uma vez lá em cima, a sensação de isolamento se agrava. Primeiro, pelas pedras das mais estranhas formas que habitam o lugar, coisa que nem parece deste mundo. E também porque, quando o tempo esquenta, as nuvens equatoriais encostam nos penhascos e envolvem de tal modo a montanha que em tudo ela se assemelha a uma ilha, só que pendurada no céu, abraçada por um oceano de névoa. Metáforas à parte, o Monte Roraima é, de fato, uma ilha geológica, separada do resto do mundo há milhões de anos, onde o tempo se viu livre para criar um universo particular. Montanhas assim são chamadas de tepuis, e há uma centena dessas no norte da América do Sul, concentradas numa área entre o Rio Orinoco e a planície amazônica. A mais alta de todas é o Roraima, cujo ponto culminante, conforme a última medição, está 2.734 metros acima do nível do mar. Os tepuis constituem a porção mais elevada do Planalto das Guianas, meseta antiquíssima cuja formação teve início na era pré-cambriana, há 1,6 bilhão de anos. Suas rochas, incluindo as que repousam no topo do Roraima, estão entre as mais antigas da Terra. Os tepuis, como montanhas isoladas, são bem mais jovens, com idade estimada em 150 milhões de anos. A mesma rachadura que separou a África da América do Sul e fez nascer o Oceano Atlântico também levantou do solo um bloco maciço de arenito, de 3 mil metros de espessura, bem nesta região. Movimentos sucessivos da crosta terrestre quebraram esse colosso em centenas de pedaços, criando fendas que a erosão terminou por alargar e aprofundar. Essas fendas tornaram-se vales e os nacos de arenito foram ficando cada vez mais distantes uns dos outros, dando origem aos tepuis. No topo, restou um retrato do planeta como era no momento da ruptura, onde as espécies animais e vegetais se desenvolveram completamente ilhadas, mas preservando certo parentesco com as das montanhas vizinhas e, inclusive, com terras que ficaram do outro lado do Atlântico. É o caso de uma certa rã de dorso negro e barriga amarela (de nome científico Oreophrynella quelchii), que guarda mais semelhanças com rãs africanas do que com aquelas que vivem na savana aos pés da montanha ou mesmo em qualquer outro ponto da América do Sul. A espécie é endêmica do Monte Roraima, e, ao que tudo indica, está aqui desde o tempo em que estas rochas eram parte de um bloco só, antes do surgimento dos tepuis, o que lhe confere mais idade inclusive que a dos dinossauros. Anfíbios parecidos, mas sutilmente diferentes, foram encontrados no topo de outras montanhas da região, e esta é uma das provas de que os platôs um dia estiveram conectados, mas que, depois de milhões de anos de isolamento, cada grupo de espécies evoluiu à sua maneira, separado do chão e do resto do mundo por escarpas de até 500 metros de altura. É por essas e outras que os tepuis são tidos pela ciência como uma espécie de Galápagos amazônica, rodeada de nuvens ao invés de mar. Igualmente isoladas no alto dos platôs, centenas de espécies de orquídeas, bromélias, samambaias e outras plantas tiveram destino semelhante. Não apenas mantiveram certos traços pré-históricos como aprenderam a sobreviver num ambiente repleto de adversidades, onde ventos úmidos e gelados surgem a todo instante e os nutrientes, que poderiam favorecer o crescimento, são varridos montanha abaixo pelas torrentes que formam algumas das maiores cachoeiras do mundo. No solo rochoso e quase estéril, espécies como a bromélia Drosera roraimae instruíram-se na arte de capturar e digerir insetos como meio de sobrevivência. Tornaram-se carnívoras, simplesmente. Tão singulares são as condições no topo do Roraima que algumas plantas chegam a ser endêmicas de um determinado ponto do platô, geralmente no fundo de um fosso onde se desenvolveu um microclima próprio. Ou seja, uma ilha ecológica dentro de outra. Tudo isto confere ao alto do Roraima certo aspecto sobrenatural, onde estranhos jardins crescem sobre rochas escuras que não parecem pertencer a este planeta. As pedras na verdade são rosadas, que é a coloração própria do arenito, mas o tempo encarregou-se de cobri-las com um limo negro e escorregadio formado por cianobactérias (também chamadas de algas azuis), organismos que estão entre os mais antigos do planeta. O platô de 34 quilômetros quadrados está todo ocupado por essas rochas, das quais a ação dos ventos, das chuvas e dos rios lavrou grutas, fossos, vales, desfiladeiros e esculturas naturais, dessas que os homens sempre tratam de comparar a objetos reconhecíveis como uma maneira de tornar lugares hostis um pouco mais acolhedores. Por aqui também correm muitas nascentes, que brotam cristalinas do chão e enchem a paisagem de lagos, piscinas naturais e pequenas quedas d´água. Seu destino é, invariavelmene, a savana logo abaixo, e para alcançá-la os rios se lançam sobre os paredões na forma de cachoeiras monumentais. A maior do mundo, o Salto Angel, com 979 metros, despenca do topo de um tepui, na Venezuela, não muito distante do Roraima. Estas nascentes fazem do Monte Roraima um divisor de águas, e foi baseado neste critério que Brasil, Venezuela e Guiana estabeleceram, no início do século 20, a fronteira tríplice que divide o platô em três partes, a menor delas em território brasileiro. Desde 1989 este trecho da montanha pertence ao Parque Nacional do Monte Roraima, área de 116 mil hectares que inclui ainda o Monte Caburaí, no extremo setentrional do país, apenas 7 quilômetros mais ao norte que o Roraima. Roraima é um nome saído do vocabulário pemón e significa algo como “Gigante Azul”, dada a tonalidade que a montanha adquire em certos momentos do dia, quando vista à distância. Para os pemones, e para muitas outras etnias indígenas que habitam as planícies em torno do tepui, este é também um monte sagrado, diretamente ligado ao mito de Makunaima. O herói que inspirou Mário de Andrade a escrever Macunaíma, clássico do modernismo brasileiro, tem origem nos relatos orais destes índios do norte, que nele enxergam um misto de ancestral e demiurgo, filho de uma rara noite de encontro entre o sol e a lua. Para eles, o Monte Roraima é o lugar onde repousa seu espírito. Reza a lenda que Makunaima era um guerreiro dado às malandragens, e que, certa feita, tomado por uma fome atroz, derrubou Wazaká, a árvore gigante de onde pendiam todos os frutos do mundo. Conforme contam os índios, a copa tombou para o norte, enchendo de florestas as terras hoje pertencentes à Guiana e à Venezuela. No sul, do lado brasileiro, restou uma savana árida e estéril. E, no lugar da árvore, onde antes erguia-se seu tronco descomunal, ficou o cepo cravado no chão. Este, segundo a lenda, seria o Monte Roraima. Na mitologia dos índios pemones, chamados de taurepangues no território brasileiro, a montanha é também a morada da deusa Kuin, que aguarda no cume com música e licores a todos aquele que se dispuserem a alcançá-lo. Essas crenças todas pertencem a tradições orais antiquíssimas, que custam a sobreviver num mundo como o de hoje. Faz algum tempo que os pemones foram cristianizados, e por isso a maioria já não acredita em muitas dessas histórias. Inclusive porque centenas desses índios já estiveram no topo do Roraima, alguns diversas vezes, guiando viajantes de certo espírito aventureiro. E, como puderam constatar, não há nada de música e licores lá em cima; apenas rochas e silêncio. Quando não há turistas, as planícies ao redor do Roraima são domínio quase que exclusivo dos indígenas. Ao norte, espalhados pela savana da Venezuela e da Guiana, vivem cerca de 30 mil pemones. Suas aldeias, inclusive, tornaram-se bases importantes para a infraestrutura turística da região. Ao sul, em solo brasileiro, estende-se a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, onde em torno de 17 mil macuxis dividem uma área de 1,7 milhão de hectares com taurepangues (ou pemones), ingaricós, uapixanas e patamonas. É uma das maiores reservas indígenas do Brasil, criada em 1998 e homologada só em 2005, depois de uma intensa disputa local com produtores de arroz. Apesar da presença maciça da população indígena, o homem branco desde muito cedo deu as caras por aqui, nem que fosse apenas de visita. O primeiro foi o inglês Walter Raleigh, misto de pirata, poeta e aventureiro que em 1595 penetrou o Orinoco em busca da cidade mítica de El Dorado. Esta ele não achou, mas viu muitas coisas em seu lugar, e uma delas foi o Monte Roraima, que avistou de longe e descreveu como “a torre branca de uma igreja de insuperável altitude”. Informado da existência de diamantes e outras pedras preciosas ali, batizou-a de Montanha de Cristal. Outros vieram depois e muitos tentaram, em vão, conquistar o topo do Roraima. A honra coube ao botânico inglês Everard Im Thurn, que, em 1884, acompanhado de Henry Perkins, descobriu na face sudoeste uma rampa natural, formada por um desmoramento do paredão, que dispensava o uso de equipamentos de alpinismo. Thurn chegou a pé ao platô, contou ao mundo o que viu e, segundo dizem, inspirou o escocês Arthur Conan Doyle a escrever O Mundo Perdido, em que o criador de Sherlock Holmes narra as aventuras de um grupo de exploradores em busca de criaturas pré-históricas no topo de montanhas que lembram, e muito, os tepuis amazônicos. A via descoberta por Im Thurn é, até hoje, a única que permite ascender ao cume do Roraima caminhando. Isto é feito pelo lado venezuelano, o que obriga os viajantes brasileiros a cruzar a fronteira na altura da cidade de Santa Elena de Uairén e, de lá, seguir até a aldeia pemón de Paraitepui, de onde parte a trilha de dois dias que leva ao platô. No primeiro dia, anda-se cinco horas pela savana; no segundo, são oito horas de caminhada extenuante, ladeira acima. Qualquer outro meio de subida envolve técnicas avançadas de escalada, inclusive quando feita pela face voltada para o Brasil, que se apresenta como uma muralha imensa dividida em dois degraus, o maior deles com 400 metros de altura. Foram necessários cinco dias de escalada para que, em 1991, três alpinistas brasileiros finalmente conquistassem o Roraima vindos de solo nacional. Uma vez lá em cima, contudo, todas as fronteiras criadas pelo homem se dissipam, invisíveis. A pátria, nesta ilha suspensa acima das nuvens, é só uma, e ela pertence ao tempo. |