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Aparados da Serra
Adoráveis precipícios Começou faz uns 140 milhões de anos, quando África e América do Sul resolveram desgarrar-se uma da outra e empreender cada uma sua viagem particular, em direções opostas. Rupturas assim costumam deixar cicatrizes marcantes, e uma das mais significativas, ferida exposta mesmo, é a escarpa oriental da Serra Geral. No momento da separação, a terra rachou como um biscoito e, do lado de cá, uma extensa faixa de penhascos abruptos restou de frente para o Atlântico. Como gêmeos siameses separados desde o nascimento, a cada metade o tempo reservou um destino diverso. Aqui, os milhões de anos que se sucederam encarregaram-se de construir um lugar raro e bonito, onde rios laboriosos, ao buscar o caminho do mar, cavaram vales íngremes e profundos, de paredes tão retas que parecem ter sido aparadas na faca. Os índios que primeiro habitaram este lugar o chamaram de Itaimbé, “pedra afiada” em tupi-guarani. Depois vieram os tropeiros, e para eles foi Aparados da Serra. Em rigor, Aparados da Serra é o nome apenas deste trecho da Serra Geral, bem onde Rio Grande do Sul e Santa Catarina fazem divisa, que demarca o início do território dos cânions meridionais. É o mesmo pedaço que, em 1959, foi transformado no Parque Nacional de Aparados da Serra e, em 1992, ganhou uma extensão sob a denominação de Parque Nacional da Serra Geral. Mas esta imensa fratura exposta transcende limites de parques e nomenclaturas e se estende para além de terras gaúchas, compondo uma vasta muralha de 250 quilômetros de extensão em que as gargantas se sucedem uma vizinha à outra, como que competindo em beleza e grandeza. Em solo catarinense, o Parque Nacional de São Joaquim estabelece a fronteira norte deste mundo vertical. Considere a paisagem dos cânions como um enorme degrau de basalto que divide este pedaço do Brasil em dois, separados por um desnível de mil metros. No alto do platô, existem os campos de cima de serra, um mar de colinas suaves e pardacentas, denominadas coxilhas, forradas por um extenso capinzal. Parece até que o Pampa subiu a serra. Território ermo, gelado e imóvel, seria decerto triste não fossem os capões de araucárias que brotam nos baixios, fornecendo sombra, comida e abrigo para bichos e homens. Este é o lugar mais frio do país, e todo inverno, nem que seja por umas poucas horas, a neve cobre os campos e faz deste Sul de altitudes e latitudes elevadas um lugar meio metido a estrangeiro. No cume do Morro da Igreja, em Urubici, a 1.822 metros sobre o nível do mar, um recorde nacional foi registrado: 17,8 graus centígrados negativos no inverno de 1996. Por esses campos os rios correm e depois escorrem pelo vértice dos cânions que eles mesmos cavaram nos últimos 20 mil anos. Alguns despencam pelos paredões feito cachoeiras gigantes, só para tornar tudo ainda mais bonito do que já é. Outros fluem rumorosos pelas rochas até encontrar a rota definitiva na direção do mar. Cerca de sessenta abismos nasceram nas encostas da Serra Geral graças ao trabalho persistente desses rios. No caso do Cânion do Itaimbezinho, o mais famoso de todos, foi necessário o empenho conjunto de dois arroios, o Perdiz e o Preá, para a criação deste desfiladeiro fenomenal de paredes tão íngremes e tão estreito vão que, quando visto do céu, é como se o chão tivesse sido rasgado a faca. Foi para proteger esta maravilha da natureza brasileira que se criou o Parque Nacional de Aparados da Serra. Mas como maravilhas semelhantes havia às pencas na região, três décadas depois foi necessário criar novo parque a nordeste, o da Serra Geral, prolongamento do anterior grande o suficiente para preservar outra meia dúzia de cânions. Entre eles o da Fortaleza, um dos maiores do Brasil, garganta de 7,5 quilômetros de extensão e 900 metros de profundidade sulcada pela ação do Rio da Pedra. Em seu esforço de construir um lugar do qual gaúchos e catarinenses pudessem se orgulhar, os rios não só esculpiram estes lindos precipícios como os preencheram de verde do vértice à boca. A água, ao varar as gargantas, fez germinar porções volumosas da mais pura Mata Atlântica, que aqui ganha contornos diversos conforme a altitude e o lugar onde se encontra. Na borda dos cânions, sobre as rochas úmidas continuamente visitadas pelas viração, brota a chamada matinha nebular, onde a vastidão ocre da estepe cede lugar a um bosque de musgos, líquens e árvores nanicas. Pelos paredões, crescem agarrados à rocha arbustos, ervas e plantas esquisitas como a gúnera, ou urtigão-da-serra, espécie rara de folhas com até 2 metros de diâmetro. Parecidas a essa, na América do Sul, só na Cordilheira dos Andes. No fundo dos vales e no sopé da serra, já quase encostada na planície que se abre para o litoral, a Mata Atlântica assume sua forma mais exuberante, enchendo a paisagem de cedros, jatobás, jequitibás, palmiteiros, perobas, bromélias e orquídeas – lar e refúgio de bichos como bugios, lontras, jaguatiricas e graxains. Mil metros abaixo do platô, o frio e a solidão dos campos parece terra estrangeira. Aqui, perto do nível do mar, os rios fluem fartos e os cânions, com as bocas escancaradas na direção da costa, recebem diariamente o sopro quente e úmido do Atlântico. Essa mesma massa de ar, à medida que penetra os abismos, esfria, condensa-se e, no sentido inverso ao dos rios, ascende pelas encostas transformada num sinistro nevoeiro que engole os campos e tudo que estiver sobre eles. Às vezes é tão denso que o camarada caminha por horas sem enxergar um palmo de distância à frente. Esta cerração os moradores da região dos Aparados chamam, apropriadamente, de “nada”. E tornam os campos de cima da serra um lugar ainda mais estranho e solitário. Não espanta que os homens tenham demorado tanto para tomar posse definitiva deste lugar. Por muito tempo, mesmo alguns séculos após a descoberta do Brasil, o alto da Serra Geral foi território quase que exclusivo de povos nômades como os Kaingang e os Xokleng, cuja sobrevivência dependia basicamente da caça e da coleta do pinhão. O homem branco mesmo só começou a dedicar certa atenção a este lugar depois que os missionários jesuítas foram expulsos da colônia no século 18 e seu rebanho de bois, antes concentrado nas missões do oeste gaúcho, largou-se pelos campos, sem dono nem curral. Dono e curral, contudo, não tardaram a aparecer: a despeito das adversidades do clima neste pedaço do Sul, ainda no mesmo século paulistas dispuseram-se a domar o gado xucro e a transformar os campos em fazendas. Para delimitar as propriedades, levantaram taipas, muros de pedras empilhadas que chegavam a se estender por quilômetros. Alguns desses ainda se encontra no meio das coxilhas. Na mesma época também chegaram os tropeiros, que cruzavam o planalto levando cavalos e mulas de carga do Pampa para as jazidas de ouro de Minas Gerais. Abriram estradas importantes como o Caminho do Viamão e, desafiando os abismos, inauguraram ramais que, pela primeira vez, conectaram os campos de cima da serra à planície. Até hoje essas vias são usadas, e, em muitos casos, continuam sendo um delirante convite à vertigem. Quem duvida que se meta a percorrer os 12 quilômetros da SC-438 que separam as cidades catarinenses de Bom Jardim da Serra e Lauro Müller. Mais do que uma estrada, trata-se de um prodígio da engenharia: mil metros de desnível vencidos por mais de duzentas curvas fechadas, algumas com ângulo de 180 graus. Na esteira desses caminhos abertos pelo tropeirismo e do crescimento das fazendas, as cidades por fim começaram a surgir no meio dos campos, não muito distantes da borda dos cânions. Cambará do Sul, São José dos Ausentes, Bom Jardim da Serra, Urubici, todas elas nasceram tardias, a partir da segunda metade do século 19 ou mesmo já entrado o século 20. São José dos Ausentes, vila de pouco mais de 2 mil habitantes, só virou município mesmo em 1992. Antes disso, aquelas terras passaram quase dois séculos esquecidas na esquina nordeste do Rio Grande do Sul, de tão frias e apartadas. No século 18, abandonadas pelos próprios sesmeiros, chegaram a ser por duas vezes ser leiloadas “em juízo dos ausentes” – daí o nome. Não que as outras cidades sejam lá muito maiores. São todas bem pequenas, na medida do desenvolvimento deste que é um dos pedaços mais isolados do sul. O modo de vida aqui ainda é essencialmente rural, conduzido no galope do cavalo e aquecido no fogão a lenha. Esqueça aquela imagem de uma serra gaúcha ou catarinense de moças loirinhas, casas em estilo alpino e dialetos importados do Vêneto ou da Pomerânia. Neste sul à beira dos cânions, a pele do povo é parda como o capinzal que cresce nas coxilhas, produto de um sangue meio índio, meio português, misturado desde o tempo das primeiras domas do gado xucro e das primeiras vias abertas pelos tropeiros. Inclusive do outro lado do Rio Pelotas, em solo catarinense, os homens vestem poncho, bombacha, guaiaca e lenço. E tomam chimarrão. Parece mesmo que o Pampa subiu a serra. Só para ser engolido pelo nada e depois desabar nos mais lindos precipícios do país. |