CANA-DE-AÇÚCAR
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O mel da lavoura
Ninguém sabe quem foi o primeiro a provar da doçura da cana, mas é certo que deve ter sido algum sequioso habitante da Nova Guiné. Pois foi ali, cerca de 8 mil anos atrás, que as primeiras mudas de cana-de-açúcar foram cultivadas pela mão do homem. Ainda não se conhecia o açúcar – bebia-se do caldo mascando o caule. E essa já era uma considerável fonte de energia naquele pedaço do Pacífico, especialmente útil nas longas viagens de canoa que os povos de lá costumavam fazer ao redor dos arquipélagos. Foi assim, de ilha em ilha, que a cana-de-açúcar lentamente atravessou a Indonésia até alcançar a porção continental asiática. Levou centenas de séculos para isso, pois só no primeiro milênio antes de Cristo é que temos registros de importantes zonas de cultivo no norte da Índia. Ali, do cruzamento com espécies locais, até então selvagens, surgiu a cana-de-açúcar como a conhecemos hoje, de caule mais fino. Devemos também aos indianos a criação das primeiras moendas para a extração da garapa – fato que levaria, sem demora, à descoberta de que, fervendo o caldo, era possível cristalizar a sacarose e então armazená-la durante meses. Era já o açúcar em sua forma rudimentar, não muito diferente da rapadura que hoje se consome no Brasil. O meio de obtê-la, inclusive, era o mesmo: a decantação do caldo, técnica que atravessaria mares e séculos até desembarcar, com poucas mudanças, nos engenhos coloniais brasileiros. É impossível determinar o momento em que o açúcar começou a ser fabricado, mas os documentos mais antigos sobre o tema, datados do século 5 a. C., já dão conta de uma série de produtos derivados da cana. Na Índia, além das rapaduras ancestrais, produziam-se cristais de açúcar (chamados khand) e açúcar granulado, ainda não refinado, parecido com areia. Daí o nome em sânscrito: sharkara (“cascalho”), termo que os árabes tomaram emprestado (al-sukkar) e que daria origem à palavra “açúcar” em mais de 40 idiomas. Notícias da cana chegaram à Europa por volta dessa época. Precisamente no século 4 a.C., quando as tropas de Alexandre Magno invadiram a Índia e voltaram falando de “bambus que produzem mel sem a necessidade de abelhas”. Da Índia, o cultivo da cana se espalhou pela Ásia junto com a tecnologia de fabricação do açúcar. Primeiro em direção à China, depois rumo à Pérsia e ao mundo árabe, já nos primeiros séculos depois de Cristo. Aos árabes, coube o papel de adaptar as técnicas indianas e aprimorar a qualidade do açúcar, encontrando meios de filtrar as impurezas e torná-lo mais branco. São deles as primeiras refinarias, bem como as primeiras grandes lavouras, abastecidas por um engenhoso sistema de irrigação. Foram os árabes também os responsáveis pela rápida disseminação da cultura canavieira, sobretudo a partir do século 7, quando o Islã iniciou seu período de expansão. Aonde o Alcorão chegasse, vinha quase sempre acompanhado de mudas de cana-de-açúcar. Foi assim que a cana alcançou o Mediterrâneo. Já no século 10 há registros de plantações em diversas áreas de ocupação islâmica, como a Sicília, o norte da África e o sul da Península Ibérica. O comércio regular com as nações europeias, porém, surgiria só depois das Cruzadas, quando a cidade de Veneza, a grande potência mercantil da época, assumiu o monopólio das rotas que ligavam o Oriente Médio aos portos da Europa. O açúcar começava, enfim, a adoçar o paladar do Ocidente. No início, restrito à mesa dos ricos. E, eventualmente, usado como medicamento contra males do estômago e dos rins, servido em forma de balas temperadas com ervas aromáticas. Nos séculos seguintes, Veneza foi tomando controle também da produção, instalando refinarias em ilhas como Malta, Chipre e Creta, aproximando ainda mais a indústria açucareira do mercado consumidor europeu. O grande salto produtivo, porém, viria pela mão de portugueses e espanhóis, no século 15. Ambos já conheciam a cana dos árabes, que naquele momento terminavam de ser expulsos da Península Ibérica. Ambos, também, haviam acabado de descobrir – e ocupar – ilhas no Atlântico em latitudes inferiores às do Mediterrâneo, portanto mais propícias ao cultivo de uma planta tropical. Assim, além de escala para as navegações ultramarinas, lugares como Madeira, Açores, Cabo Verde – pertencentes a Portugal – e as Canárias, espanholas, rapidamente se tornaram o território por excelência para a expansão dos canaviais. As melhores condições estavam na Ilha da Madeira, que em menos de um século transformou-se na maior produtora e exportadora mundial de açúcar. Entre 1432, quando se instalaram os primeiros engenhos, até o final daquele século, a produção saltou de 70 para 1.200 toneladas anuais. O que não é pouco se lembrarmos que, na época, o açúcar ainda era um ingrediente raro e caro, com valor de mercado 40 vezes maior do que hoje. Servia, inclusive, como donativo para instituições de caridade, como conventos – fato que favoreceu o desenvolvimento da doçaria conventual portuguesa. Durante pelo menos um século e meio, praticamente toda a economia da Madeira girou em torno do açúcar, envolvendo mais de 15 mil pessoas – de comerciantes judeus a milhares de escravos africanos. Foi o grande laboratório português da cultura canavieira, onde em grande parte se estabeleceu o modelo que depois seria aplicado nos engenhos brasileiros. Não foram os portugueses, porém, os primeiros a levar a cana-de-açúcar às Américas. O feito deve-se a Cristóvão Colombo, cujas naus carregaram mudas das Ilhas Canárias na terceira viagem que fez ao Novo Mundo, em 1498. Quando se introduziram as primeiras lavouras na Ilha de Hispaniola – hoje Haiti e República Dominicana –, os espanhóis perceberam que a cana crescia numa velocidade jamais vista em qualquer outro canto do mundo. A planta, afinal, reencontrava suas latitudes de origem – os mesmos trópicos de sol intenso e chuva abundante que permitiram seu desenvolvimento na Índia e no Pacífico. Mas num solo ainda mais fértil. Menos de duas décadas depois da chegada de Colombo, uma indústria açucareira já florescia no Caribe sob o controle dos espanhóis. Ilhas como Cuba, Jamaica e Porto Rico agora estavam repletas de engenhos. (texto completo no livro) |