SACRACIDADE
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Alá no Anhangabaú
São Paulo não se cala nem na presença de Alá. Tudo vaza pelas janelas da sobreloja do Palacete Riachuelo: as motos, os motores, as buzinas, as freadas, o Anhangabaú inteiro num defloramento sonoro se apossando da sala de reza para uma disputa injusta com o microfone do imã. Só a voz de Ibrahim, o muezim, ao anunciar as preces de sexta-feira, é capaz de conter a impertinência da cidade – uma melodia oblíqua, reminiscente de uma terra remota, que impregna a sala de uma luz mística e entorpece o Centro para que todos ali se lembrem da presença de Alá e de seu profeta. Cinco vezes por dia, da alvorada ao anoitecer, todo muçulmano deve suspender momentaneamente suas atividades, voltar-se para Meca e reafirmar sua fé no Criador. É obrigatório, no entanto, fazer a segunda reza de sexta na mesquita, junto aos irmãos de credo: é o dia mais sagrado do Islã, quando, de acordo com o Alcorão, Alá teria criado o homem. Na Bilal al-Ghabash, assim como em todas as mesquitas do mundo, a oração começa no momento em que o sol brilha em seu ponto mais alto no céu, por volta do meio-dia – “a hora de maior movimento, quando estão todos na rua trabalhando, indo atrás do dinheiro”, segundo Yahya, o imã. “É uma forma de obrigar as pessoas a parar para rezar justo quando menos se lembram de Alá.” A mesquita do Anhangabaú não tem minarete, então o Allahu Akbar (“Deus é o maior”) se faz na própria mussala, a sala de oração, diante da cortina laranja que cobre a parede do fundo, a qibla, voltada para Meca. O templo ainda está um tanto vazio nessa hora, mas vai se enchendo conforme avança a homilia do imã, 40 minutos em português e depois 10 minutos em inglês – língua natal do pregador, nascido em Gana, e de boa parte dos fiéis presentes, provenientes de países como Nigéria e Tanzânia. Mas nem todos devem entender o que Yahya diz, ou porque vêm de nações de língua francesa, como Guiné e Senegal, e ainda não aprenderam o português, ou porque não falam o idioma de colonizador algum, só a de seu povo e, talvez, o árabe aprendido nas escolas corânicas, como língua litúrgica. Todas as Áfricas parecem caber nestes poucos mais de 100 metros quadrados com vista para o vale. E, contudo, é uma África só. O calor já está subsaariano por volta do meio-dia, apesar dos seis ventiladores, e aumenta ainda mais à medida que os fiéis vão chegando e encontrando um canto no tapete bege, mãos e pés ainda pingando a água da ablução. São quase todos pretos. Ou quase pretos. Ou não brancos. Esta é sua mesquita, “a dos pretos”, como se diz, um dos poucos lugares em São Paulo onde encontraram liberdade para louvar Alá à sua maneira. Eles, os pretos africanos, e também os pretos brasileiros, “revertidos”, como gostam de se identificar, à fé de seus antepassados escravos – todos aglutinados em nome da cor, da fé e da saudade de casa, seja ela a pátria islâmica recriada na metrópole, seja o banzo tardio decorrente da lembrança de uma África imaginada, que nunca se chegou a conhecer. Uma e meia da tarde e já são quase 150 homens em fila, de pé, voltados para Meca. Um do lado do outro, todos iguais perante Alá. As mulheres, não mais que uma dúzia, ficam numa sala anexa, no fundo, separadas por uma fileira de cadeiras de plástico – são poucas porque só aos homens é exigida a frequência na mesquita às sextas. O Anhangabaú ainda grita, inoportuno, mas agora é o muezim quem está de microfone na mão, conduzindo as súplicas finais e a série de rakats, os movimentos devocionais que são a manifestação física da obediência a Alá (Islã é a palavra árabe para “submissão”). Até este momento, todos na mesquita permaneceram em silêncio, no máximo murmurando as orações. Mas chega a hora do amém e a África inteira parece proclamá-lo num coro só. A cidade se cala e, ao menos por um instante, São Paulo não existe mais. Só Alá. O Palacete Riachuelo foi um dos primeiros prédios de apartamentos da cidade. Não podemos chamar seus oito andares de arranha-céu, mas em 1928, quando brotaram na paisagem central, fizeram uma tremenda diferença no skyline com sua fachada neogótica e seus guarda-corpos em ferro forjado. Nos anos 1970, por pouco o prédio não foi por terra para dar lugar ao metrô, mas acabou sendo poupado e, por sorte, tombado – no bom sentido. E pelo jeito os muçulmanos do Centro gostam de tesouros arquitetônicos, pois este já é o segundo edifício tombado no qual se instalam. O primeiro endereço da Bilal al-Ghabash foi o nono andar do edifício Esther, marco inaugural do modernismo em São Paulo. A chamada “mesquita da República” existiu por cinco anos ali, de 2005 a 2010 – “anos muito difíceis”, segundo um de seus fundadores, Jair Maceió, aliás Mohammed Ali Numairi, aliás Mauma. Mauma (apelido derivado de Mohammed) foi um dos primeiros brasileiros a se converter ao islamismo, no remoto ano de 1968, quando só havia um templo muçulmano em São Paulo – a Mesquita Brasil, frequentada exclusivamente pelos sírio-libaneses, pouco interessados em divulgar sua fé. Os ventos do Islã que por aqui batiam vinham soprados dos Estados Unidos, onde figuras como Malcolm X e o boxeador Muhammad Ali começavam a fazer do Alcorão também um instrumento do ativismo negro. Mauma, na época, conheceu “uma negada que se reunia no viaduto do Chá”, e com eles constituiu a semente do novo islamismo paulistano, inicialmente cultivado entre a casa de um dos integrantes, onde se reuniam para ler o Alcorão, e as rezas de sexta-feira na mesquita dos libaneses, mesmo sem entender uma palavra de árabe. A primeira sala de oração própria surgiu em 1979, na Zona Sul, com o nome de Mesquita Muçulmana Afro-Brasileira. O objetivo, “dar um jeito na família negra brasileira. Só no Islã víamos saída para ela”. O grupo cresceu e, em 2005, Mauma e seus amigos revertidos sentiram a necessidade de abrir uma mesquita no centro da cidade, de onde pudessem irradiar de modo mais eficaz os ensinamentos do Alcorão. Para o nome do templo, escolheram Bilal al-Ghabash, escravo abissínio que se tornou um dos principais parceiros de Maomé, designado pelo profeta para ser o primeiro muezim. Bilal era negro, como Muhammad Ali e Malcolm X eram negros, e como negras eram as pessoas daquele primeiro grupo de brasileiros a abraçar a fé islâmica, todos em busca de uma identidade extraviada, esquecidos de si mesmos depois de tanto tempo sendo convencidos a se sujeitar à hegemonia branca. Poderiam ter aderido ao candomblé, mas preferiram se curvar a Alá. Era grande, de fato, o número de africanos trazidos à força ao Brasil que acreditavam em orixás e outras divindades animistas, mas a história costuma esquecer que uma parte significativa dos negros escravizados professava a fé de Maomé. Vinham quase todos do norte da atual Nigéria, habitado por povos islamizados como os hauçás, os nupes e os fulanis. Distinguiam-se dos outros escravos pelo fato de saber ler e escrever, e chegavam a ser mais instruídos que muitos dos senhores. Eram austeros e altivos, nunca se misturando aos não muçulmanos e muito menos se dobrando à fé católica imposta pelos amos. Na madrugada de 25 de janeiro de 1835, na última semana do mês do Ramadã, 60 homens portando grigris – amuletos contendo orações e trechos do Alcorão – invadiram a Câmara Municipal de Salvador com a intenção de libertar da cadeia um de seus líderes (que, aliás, também se chamava Bilal). Não era o primeiro ataque: já há alguns anos os muçulmanos da cidade vinham ensaiando pequenos atentados como forma de chamar a atenção da população negra soteropolitana. Em seus encontros, alternavam recitações do Alcorão com os planos de criar uma Bahia islâmica. A investida sobre a Câmara fracassou, mas os revoltosos saíram pelas ruas conclamando a participação de outros escravos, muçulmanos e não muçulmanos. Juntaram no total 600 homens. No comando, os malês (há controvérsia sobre a origem desse nome, mas se deduz que venha ou de malam, palavra hauçá para mestre, ou de imale, como os iorubás chamavam os muçulmanos). A Revolta dos Malês durou poucas horas. Ao amanhecer, os insurgentes já haviam sido derrotados na Cidade Baixa, contando 70 mortos e dando por encerrada a jihad baiana. Mas o impacto de seu projeto islâmico, esse sobreviveu. Tanto é que, dos líderes, poucos foram condenados ao fuzilamento ou às chibatadas; o governo preferiu deportá-los para a África, temendo que sua morte pudesse incendiar os ânimos de insurreição nos escravos da cidade. Deu certo: sem os malês como alento, o Islã negro brasileiro mergulhou num longo sono, do qual seria desperto apenas um século e meio depois. A abertura da Bilal al-Ghabash no edifício Esther coincidiu com a aumento do afluxo de africanos ao Brasil – uma nova leva transatlântica, felizmente não mais escravizada, mas igualmente composta de grande volume de adeptos do islamismo. Talvez até mais do que no tempo da escravidão. Não nos esqueçamos que hoje a África negra, abaixo do Saara, concentra 240 milhões de muçulmanos – um Brasil inteiro, e um pouco mais, louvando Alá. Desses africanos que imigravam para cá, a maioria aportava em São Paulo, em particular no Centro, onde as primeiras comunidades se formaram e a oferta de trabalho era maior. Por desconhecer a existência da mussala da República, iam buscar acolhida do outro lado do Tamanduateí, nas mesquitas Brasil e do Brás. Batiam na porta dos libaneses e de lá não passavam: “Eles mandavam todos os africanos para a gente”, lembra Mauma. “Na nossa visão, isso era racismo.” E o nono andar do Esther, inicialmente refúgio para os herdeiros dos malês, terminou se tornando pouso seguro para todo tipo de muçulmano desterritorializado na cidade, pelo simples fato de não ser árabe. A mesquita tinha agora tanto os pretos de cá quanto os de lá, unidos pela pele, pela devoção a Alá e por um inegociável senso de exclusão da sociedade islâmica paulistana, chefiada pelos sírio-libaneses desde os anos 1920 e na época ainda um tanto desconfiada com essa nova leva de seguidores dos ensinamentos de Maomé. Nos cinco anos em que existiu, a mesquita da República sobreviveu com dificuldade. No islamismo, toda mesquita deve ser mantida com a contribuição dos frequentadores – estes havia de sobra na Bilal al-Ghabash; o que faltava era renda suficiente para pagar o aluguel, mesmo que se juntasse o dízimo obrigatório de todos os fiéis. “Os africanos não tinham dinheiro”, conta Mauma. Muitos nem trabalho tinham, alguns nem sequer documentos legais para viver no país. Daí que Mauma, o presidente na época, acabou sustentando o templo praticamente sozinho, a ponto de vender o carro para bancar uma reforma. Em 2010, com inúmeros aluguéis atrasados, a mesquita dos pretos fechou e os africanos passaram a frequentar um templo na rua Guaianases, que pertencia a um marroquino – tudo da Bilal al-Ghabash, tapetes, livros, exemplares do Alcorão, foi para lá. Menos Mauma, que, entristecido, acabou se afastando do ativismo religioso, limitando-se a frequentar, sem muita regularidade, algumas mesquitas espalhadas pela cidade. Foram mais cinco anos nesse limbo, até que apareceu, do nada, “um pessoal do Kuwait” que se ofereceu para comprar uma nova sede, inaugurada em janeiro de 2016. O que nos leva de volta ao Palacete Riachuelo e seus guarda-corpos de ferro forjado, incluindo os da sacada frontal, pertencente à mesquita, sob a qual se instalou um painel eletrônico que convida os passantes a travar contato com a palavra de Alá. “Conheça o Islam e os Muçulmanos”, convoca o letreiro, bem de frente para a saída do metrô Anhangabaú. Quem se sentir instigado, basta subir um lance de degraus e já terá chegado à sala de abluções, um recinto azulejado onde os fiéis se lavam das impurezas do mundo. À esquerda do portão de entrada fica a Woodstock Discos, loja que nos anos 1980 ajudou a disseminar o nada islâmico heavy metal no Brasil. À direita, o pequeno estabelecimento onde Yahya, o imã, vende bebidas, salgadinhos e chicletes. Quando ele não está lá, é porque está no andar de cima, guiando aquele que talvez seja o mais familiar de todos os rebanhos espirituais que já liderou. Depois de estudar na Malásia e pregar durante anos no Japão e na Suécia, Yahya nunca esteve tão perto da África. “Aqui os africanos se sentem à vontade”, ele diz. Não apenas porque estão entre iguais, mas também porque a Bilal al-Ghabash é, das mesquitas de São Paulo, talvez a que mais se aproxime da ideia de um espaço de convivência, como é de praxe nos templos muçulmanos africanos. Entre uma reza e outra, os fiéis descansam, almoçam, tiram uma soneca, e sem que alguém olhe torto por isso. “Você é livre aqui”, reforça o imã, lembrando de uma certa maleabilidade própria do islamismo subsaariano, sobretudo quando comparado ao dos países do Oriente Médio, onde a sharia, a lei islâmica, costuma incidir de modo mais intransigente sobre a vida dos praticantes. “É light que fala, né?”, confere Mauma. “Pois no dia do Juízo Final eles vão ver a lightidade deles.” Mauma não é muito simpático a esse islamismo um tanto elástico, principalmente quando vê frequentadores da mesquita bebendo no bar ou se acabando na balada. Não que a carne seja fraca, mas é que no Brasil, havemos de convir, o desregramento é a regra. “Eles chegam aqui e ficam deslumbrados”, diz Wallace Nunes, um jornalista brasileiro frequentador da mesquita, filho de um imigrante da Guiné-Bissau. Mauma desaprova: “Se lá eles são meio muçulmanos, aqui eles têm que ser muçulmanos inteiros”. E fala em nome de centenas de brasileiros que abraçaram o Islã, não raro mais entusiasmados em sua fé que muitos muçulmanos de berço. “Nós sempre fomos mais religiosos. O brasileiro revertido segue à risca o islamismo”, conta Mauma. “Se eu tomo uma coisa para mim, eu vou seguir direito.” E isso, para Mauma, consiste em abrir mão de tudo, inclusive da gafieira de fim de semana, aonde não vai desde os tempos da reversão. “Cara, essa é uma coisa que me pega até hoje.” Foram esses brasileiros convertidos (ou revertidos) que puxaram a cifra do número de muçulmanos no Brasil nos últimos anos. Desde a novela O Clone, de 2001, o país tem visto um crescimento exponencial no volume de seguidores da doutrina maometana. O 11 de Setembro, curiosamente no mesmo ano, também fez com que as mesquitas se abrissem à sociedade brasileira, como forma de diluir o preconceito. As estatísticas, contudo, não são muito claras: no censo de 2010, cerca de 35 mil pessoas no Brasil se declararam devotas de Alá, quase 10 mil a mais do que em 2000. Entidades islâmicas, no entanto, atestam que esse número está hoje entre 800 mil e 1,5 milhão de fiéis, segundo contagens feitas nas comunidades de adeptos. “Muitos muçulmanos não gostam de falar que são muçulmanos”, explica Wallace, que também é assessor de comunicação da Federação das Associações Muçulmanas do Brasil, uma das instituições responsáveis pelo levantamento. Cifras à parte, que a fé de Maomé está crescendo, é fato: já existem cerca de cem mesquitas, escolas e salas de oração islâmicas no Brasil, três vezes mais do que há três décadas. Quase todo Estado brasileiro tem ao menos uma sala de reza, e quase sempre ela está na periferia, onde as revelações de Alá se espalham com mais vigor, alcançando negros e pobres da mesma forma como cativaram Mauma e outros membros da velha guarda afro-islâmica brasileira. “O Islã não deixa espaço para a dúvida. Ou é ou não é”, diz Mauma, lembrando que, nestes tempos de incerteza, toda fé que ofereça uma direção única, sem atalhos ou desvios, levará certa vantagem sobre as outras. O Alcorão, inclusive, é o mesmíssimo livro há quase 1400 anos: a palavra literal e inalterada de Alá conforme revelada ao profeta Maomé, e desde então recitada diariamente, e de forma idêntica, por 1,5 bilhão de pessoas no mundo. “O ser humano precisa de identidade, e o Islã te dá essa identidade”, diz Jorge Washington de Paula, aliás Zakarias Zubeid, revertido em 1973, depois de passar por outras nove religiões. “Tiraram a identidade do negro. O islamismo nos devolveu essa identidade.” E, para muitos, de um modo muito franco, retilíneo, em canal direto entre o Criador e seu devoto, sem exigir muito deste último. “Para ser muçulmano, você só precisa de cinco coisas” , explica o imã Yahya. São os Cinco Pilares do Islã, conforme descritos na Suna, o conjunto de práticas de Maomé que têm valor de lei. Eles consistem em aceitar Alá como o único Deus, orar cinco vezes ao dia em direção a Meca, doar 2,5% dos seus rendimentos aos necessitados, jejuar no mês do Ramadã e fazer ao menos uma vez na vida a peregrinação a Meca. “Se você está confuso, pode se prender ao Alcorão e à Suna que você não vai se desviar”, afirma o imã. Alguns já se desviaram, ele diz, sobretudo brasileiros apressados e um ou outro africano seduzido pelo neopentecontalismo. Mas o rebanho só cresce. “A cada semana chegam uns seis brasileiros novos aqui na mesquita”, diz Yahya. No geral gente da periferia, integrante de movimentos sociais ou ativista da negritude. A mesquita continua sendo a dos pretos, e eles são cada vez mais numerosos: desde que se mudaram para o Anhangabaú, a quantidade de fiéis dobrou. “Já estamos procurando outro lugar, porque aqui não cabe mais”, conta Mauma. Será no Centro, isso é certo. Como é certo também que terão de novo o apoio de entidades islâmicas, possivelmente da Turquia, que já contribuiu com o tapete bege da mussala. É de se esperar que, no novo espaço, a cidade deixe Alá em paz. O imã está confiante: “A palavra de Alá é como pedra. Você joga na água e ela se espalha”. |