O FIM DO DESENXERGAR
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Olhos de arame
Os olhos de Elier são 320 metros de arame. Estendem-se do alpendre da casa ao milharal nos fundos do terreno, com escalas na pocilga, no chiqueiro, no pasto das ovelhas, em outro milharal e na rocinha de sequeiro, nutrida pela água da chuva. Tateando o arame, Elier enxerga a gleba toda. É tipo estrada, só que de aço, pela qual ele trafega no escuro até chegar às lavouras necessárias, que apruma com assombrosa precisão: fileiras inteiras de pés de milho, alinhadas como um exército vegetal de estritas regras. Elier não tem olhos nem régua, mas tem duas estacas e um facão, e é o que lhe basta para estipular as medidas que farão vingar a produção. O resto é tato e talento: apalpando cada espiga, cada cabelo de milho, ele sabe se está ou não no ponto de colher. Precisa consertar o galinheiro, aumentar a pocilga? Lá vai seu Elier com a mão no arame e pronto: nasce um novo lar para porcos e galinhas. José Elier Alves Barros está a ponto de completar meia vida sem ver. Trinta anos atrás, no dia 11 de novembro de 1988, sentiu a moto ser estraçalhada por um caminhão na estrada entre Santa Filomena e o povoado de Faveira, onde morava e ainda mora. O filho James, que estava na garupa, ficou coxo de uma perna. Elier teve descolamento de retina, tentou operar, esteve até em São Paulo, mas não deu: perdeu para sempre o nervo óptico. – Com 32 anos minha vida acabou e começou outra vida, de trevas. – lamenta-se. Mas Elier é cabra pertinaz, turrão mesmo, do tipo que odeia que façam as coisas por ele. Era homem de roça, e da roça haveria de viver, como desse. E tinha mulher e ainda mais dois filhos para criar. Foi botar o arame e uma nova vida floresceu na escuridão. Melhor até do que a primeira. – Parece até que inventei mais coisa depois que perdi a visão… Pois é: quando ainda via, tudo que tinha era uma lavourinha de tomate, melancia, maracujá, coisa pouca. Depois, já no meio do negrume, meteu-se a plantar milho, engordar porco, criar peixe. Em 2015, quando os técnicos de fomento à agricultura familiar conheceram sua história e a vontade de ir além, Elier não duvidou: quis diversificar a produção. Usou o programa para comprar duas ovelhas marrãs – recém desmamadas –, botou um tanque com cem tambaquis nadando dentro e aumentou a população suína da propriedade com a compra de uma porca e um barrão, macho reprodutor que já gerou 28 descendentes. Ah, e tem as galinhas caipiras, que ciscam incautas no quintal à espera da abertura de uma cozinha comunitária na sede de Santa Filomena, bem ali perto. Elier também ganhou alguns quilos de sementes para avolumar o milharal e ainda obteve a chance de vender quinhentas espigas por semana, que vão direto para escolas, creches e outros serviços públicos. No escuro, apalpando o arame, seu Elier levantou um patrimônio que hoje lhe rende pelo menos 4 mil reais por mês. Tudo isso depois de ficar cego. – Eu acho que tá é bom. – ele resume. Depois conserta: – Acho, não. Tá bom mesmo. E sentencia, cheio dos mistérios: – Pelo esforço da gente, a gente vai enxergando coisas que você não pode dizer. |