Xavier Bartaburu
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O FIM DO DESENXERGAR
Coletânea de histórias sobre os impactos do programa de desenvolvimento social Mais IDH, do governo do Maranhão. Textos de Xavier Bartaburu, fotos de Fellipe Neiva.

Outros textos deste livro:
A galinha que virou horta
Quando o rio é rua 
O fim do desenxergar

Olhos de arame

Os olhos de Elier são 320 metros de arame. Estendem-se do alpendre da casa ao milharal nos fundos do terreno, com escalas na pocilga, no chiqueiro, no pasto das ovelhas, em outro milharal e na rocinha de sequeiro, nutrida pela água da chuva. Tateando o arame, Elier enxerga a gleba toda. É tipo estrada, só que de aço, pela qual ele trafega no escuro até chegar às lavouras necessárias, que apruma com assombrosa precisão: fileiras inteiras de pés de milho, alinhadas como um exército vegetal de estritas regras. Elier não tem olhos nem régua, mas tem duas estacas e um facão, e é o que lhe basta para estipular as medidas que farão vingar a produção. O resto é tato e talento: apalpando cada espiga, cada cabelo de milho, ele sabe se está ou não no ponto de colher. Precisa consertar o galinheiro, aumentar a pocilga? Lá vai seu Elier com a mão no arame e pronto: nasce um novo lar para porcos e galinhas.

José Elier Alves Barros está a ponto de completar meia vida sem ver. Trinta anos atrás, no dia 11 de novembro de 1988, sentiu a moto ser estraçalhada por um caminhão na estrada entre Santa Filomena e o povoado de Faveira, onde morava e ainda mora. O filho James, que estava na garupa, ficou coxo de uma perna. Elier teve descolamento de retina, tentou operar, esteve até em São Paulo, mas não deu: perdeu para sempre o nervo óptico.

– Com 32 anos minha vida acabou e começou outra vida, de trevas. – lamenta-se.
Mas Elier é cabra pertinaz, turrão mesmo, do tipo que odeia que façam as coisas por ele. Era homem de roça, e da roça haveria de viver, como desse. E tinha mulher e ainda mais dois filhos para criar. Foi botar o arame e uma nova vida floresceu na escuridão. Melhor até do que a primeira.

– Parece até que inventei mais coisa depois que perdi a visão…

Pois é: quando ainda via, tudo que tinha era uma lavourinha de tomate, melancia, maracujá, coisa pouca. Depois, já no meio do negrume, meteu-se a plantar milho, engordar porco, criar peixe. Em 2015, quando os técnicos de fomento à agricultura familiar conheceram sua história e a vontade de ir além, Elier não duvidou: quis diversificar a produção. Usou o programa para comprar duas ovelhas marrãs – recém desmamadas –, botou um tanque com cem tambaquis nadando dentro e aumentou a população suína da propriedade com a compra de uma porca e um barrão, macho reprodutor que já gerou 28 descendentes. Ah, e tem as galinhas caipiras, que ciscam incautas no quintal à espera da abertura de uma cozinha comunitária na sede de Santa Filomena, bem ali perto.

Elier também ganhou alguns quilos de sementes para avolumar o milharal e ainda obteve a chance de vender quinhentas espigas por semana, que vão direto para escolas, creches e outros serviços públicos. No escuro, apalpando o arame, seu Elier levantou um patrimônio que hoje lhe rende pelo menos 4 mil reais por mês. Tudo isso depois de ficar cego.

– Eu acho que tá é bom. – ele resume. Depois conserta: – Acho, não. Tá bom mesmo.

E sentencia, cheio dos mistérios:
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– Pelo esforço da gente, a gente vai enxergando coisas que você não pode dizer.



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