Xavier Bartaburu
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O FIM DO DESENXERGAR
Coletânea de histórias sobre os impactos do programa de desenvolvimento social Mais IDH, do governo do Maranhão. Textos de Xavier Bartaburu, fotos de Fellipe Neiva.

Outros textos deste livro:
A galinha que virou horta
Olhos de arame

O fim do desenxergar

Quando o rio é rua 

No dia 22 de outubro de 2017, Indo e Voltando fez sua primeira e última viagem de carro. A despeito do nome, foi, mas não voltou: atada à capota de uma caminhonete, a canoa venceu os 70 quilômetros que separam Tutoia do povoado de Carnaubeira, município de Araioses, e ali ficou. Encontrou endereço definitivo num trapiche à beira do rio Santa Rosa, no meio do Delta do Parnaíba, diante de um vasto manguezal, em cujos troncos se agarram ostras suculentas, apenas reveladas nas horas de maré baixa.

Quando chegou a seu destino, a canoa não tinha nome nem cor: desembarcara da picape tal como viera ao mundo, crua e nua, com seu esqueleto de 5,5 metros de comprimento feito de pequizeiro e louro-cedro exposto à vista de todos. Se canoa fosse gente, talvez Paloma, o barco que Bolinha usara nos últimos 13 anos, teria ficado com ciúmes. Imagine a velha canoa, toda puída, encostada de cabeça para baixo ao pé de uma árvore, assistindo Carnaubeira inteira vindo ver o novo instrumento de trabalho de seu dono. Mas Bolinha garante que Paloma não será esquecida:

– Não vou botar pra perder, não. Vou botar pra consertar e depois vejo o que faço. Talvez eu venda.

Raimundo Nonato Gonçalves – de apelido Bolinha – é filho de pescador, genro de pescador, marido de pescadora e ele mesmo um mestre da tarrafa há pelo menos quarenta anos. Quando gente do governo apareceu em Carnaubeira com a ideia de investir em produtores locais, Bolinha e sua mulher, Elizabete, não pensaram duas vezes:  tá na hora de ter uma canoa nova. Talvez algum equipamento de pesca, se sobrasse dinheiro. (Sobrou: investiram numa caçoeira, rede que eles soltam atravessada no rio e a correnteza se encarrega de capturar os peixes.) As filhas também saíram ganhando: não com a canoa, mas com um incentivo próprio de mesmo valor para desenvolver peças de artesanato; Girlene usando cascas de ostra, Iolene pintando garrafas.

Agora Indo e Voltando, já revestida das cores que Bolinha escolheu para ela – branco e vermelho, com uma listra preta –, zarpa três vezes por semana do trapiche que lhe serve de casa na direção dos canais e igarapés que o rio Parnaíba desenha antes de seu encontro final com o mar. Atreve-se inclusive a navegar águas que Paloma costumava evitar, já nas franjas do Atlântico.

– O material é bom, novo, mais confiável. – diz Bolinha. – A gente vai mais longe, sem medo da ventania.

E vão sempre os dois, Bolinha e Elizabete, marido e mulher, buscar e trazer o de comer. Garantem que não costuma dar briga: todas as tarefas são divididas de acordo com a habilidade de cada um. Na hora de pescar tainhas e camarões, Bolinha maneja a tarrafa enquanto Elizabete comanda o remo; se é para soltar a caçoeira à cata de robalos e camburis, os papéis se invertem: o marido no barco, a mulher na rede. Com o espinhel, os dois juntos capturam pescadas, bagres e arraias. E no caminho de volta ainda aproveitam para arrancar algumas ostras do lodo do mangue. Saem na maré alta e voltam sempre com pelo menos 10 quilos de peixe, que vendem ali mesmo, na comunidade – ou fresco ou já pronto para comer, feito por Elizabete sob encomenda, seja frito, grelhado ou cozido.

Já íntima das águas do Santa Rosa, Indo e Voltando agora vai estrear no esporte. Domingo que vem, durante a festa de São José, vai participar pela primeira vez de uma corrida de canoa.

– É animado que só – se empolga Elizabete.

Depois da novena, antes do forró, os barcos de Carnaubeira vão se lançar ao rio na esperança de conquistar o prêmio de 400 reais. Bolinha não vai remar, mas vai emprestar a canoa nova aos cinco participantes que tentarão levá-la até a linha de chegada.

Resta a dúvida:

– É quem é fica com o prêmio, Bolinha? A equipe ou do dono da canoa?
Bolinha faz uma pausa para responder, como se ainda não tivesse parado para pensar nisso. Depois decreta, todo sorridente:  
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– Com o dono, né?  

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