O FIM DO DESENXERGAR
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O fim do desenxergar
Tudo que restou da dona Maria da Conceição foram os óculos. – O resto eu dei tudo – resume José de Souza, o marido. Os óculos e a lembrança, é claro. Mas de tudo que é inerte só ficou o mesmo o par que seu José comprou para ela em 2005, dez anos antes de ela falecer, e que hoje ele guarda na gaveta, memória em forma de vidro e aço que ajuda a suportar a dor da falta. – Tá lá onde ela guardava. Ninguém mexe, não. Lá na casa da dona Conceição e do seu José era ela quem sabia das coisas. Ele sabia da roça, do mato, do tempo certo de plantar e colher, mas estudo mesmo era com ela. Seu José, quando criança, teve lá seus dias de escola: o pai dava 2 contos por mês à professora, numa época em que ensino era algo que se pagava, já que faltava governo que desse instrução para a meninada. – Naquele tempo 2 contos era dinheiro... Daí que seu José deixou de aprender o ler e o escrever e assim ficou. Para o caso de precisão, tinha a dona Conceição e seus óculos. Quando a esposa faleceu, que jeito?: seu José foi se instruir também, para ver se pelo menos essa falta ele achava forma de preencher. E descobriu, veja só, que também precisava de óculos. Apertava tanto os olhos para enxergar o quadro que a professora teve que começar a fazer as letras bem grandes, só para o seu José poder aprender o beabá. Agora ele está na fila que leva ao auditório da Unidade Escolar Antonieta Castelo, esperando o momento de botar os olhos na máquina que vai enxergar o seu desenxergar. É a primeira das três filas que ele vai fazer nesta manhã de sábado: a próxima é a que levará à sala de aula transformada em consultório oftalmológico; a última, a da escolha da armação. Sim, seu José agora também vai ter seus próprios óculos. Ele e os outros cerca de 2.400 aldeias-altenses matriculados na segunda fase do programa Sim, Eu Posso!, que nestes dois dias de mutirão lotam quase todos os espaços livres da maior escola de Aldeias Altas. É preciso um pouco de paciência, até porque são só cinco os oftalmologistas para atender esse tanto de gente. Mas veja que bom: ao fim de algumas horas, ninguém sairá dali sem uma encomenda de óculos novo. Muitos deles, pela primeira vez na vida. Taí um diferencial do projeto: além de dar cartilha, mochila e camiseta, o governo ainda fornece os óculos, já que grande parte dos alunos são idosos com problema de vista. E, como a maioria trabalha na roça ou na cidade durante o dia, as aulas acontecem sempre à noite, o que dificulta o enxergar. Já é a segunda leva de alunos do município matriculados no programa de alfabetização. No ano passado, 1.918 pessoas receberam diploma atestando o domínio do abecê. Quando todos estes novos se formarem, Aldeias Altas será uma terra de leitores. – Vamos ser o primeiro município maranhense a erradicar o analfabetismo – confia Gabriela Silva de Mello, brigadista da Brigada Salete Moreno, braço do Movimentos dos Trabalhadores Sem-Terra (MST) responsável pela implantação do Sim, Eu Posso! no Maranhão. – E a formatura vai ser na rua. Vamos convidar a cidade toda! Seu José certamente estará lá. E de óculos novo. Ainda não sabe qual vai escolher: são mais de cem modelos de armação sobre a mesa que serve de óptica provisória na sala do quinto ano. Tem de aro redondo, oval, quadrado, de metal, de acetato, preto, colorido ou tartaruga. Para as mulheres, as opções chegam a duzentas. É a mais lenta das filas: imagine esse povo todo provando armação por armação, diante dos espelhinhos que os mutirantes seguram na mão. Tem quem pegue o primeiro que viu, mas tem também os que experimentam quase a mesa toda. Uma vez escolhido o modelo, a receita segue para São Luís, de onde voltará a Aldeias Altas uns 20 dias depois, à mão de seus donos definitivos. Raimundinho foi um que não precisou pegar fila. Passou na frente de todos com sua cadeira de rodas, empurrada por Rayssa, sobrinha e professora. Raimundo Alves da Silva teve paralisia infantil aos 7 e desde então passou 35 anos entrevado, morando com a mãe, sem que pudesse ter qualquer tipo de instrução. Nem conta ele sabia fazer. Pior: o pessoal da prefeitura quase todo ano matriculava o rapaz só para poder fechar a turma – mas sem botá-lo na sala de aula. – Ele emprestou o nome para todo o mundo, mas nunca estudou – reclama Gabriela. Raimundinho quase não fala, mas ri que é uma beleza. Na turma de Rayssa, lá no povoado de Brejo do Lar, é um dos mais aplicados. Chega segunda-feira à noite, o rapaz é puro desassossego: fica só esperando Adilson, o marido de Rayssa, chegar para levá-lo à aula. – Quando a gente vai buscar, ele já fica todo animado – diz Rayssa. – Ele tem é prazer de estudar. Isso ninguém tinha se dado ao trabalho de perguntar: se ele também queria ir à escola. Pois agora, como seu José, Raimundinho também vai usar óculos pela primeira vez. Teve quem achou que fosse difícil encontrar um modelo que ficasse bom, já que o rapaz tem a cabeça com o dobro de tamanho de uma normal, por conta da paralisia. Mas veja só: ele não levou nem 5 minutos para escolher a nova ferramenta de enxergar. E vai ser de acetato preto, desses bem modernos. |