PAISAGENS GASTRONÔMICAS
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OSTRA NOSTRA
As ostras do Lagamar escolheram um dos melhores lugares do mundo para viver. Ache Cananeia no mapa, note o entorno: eis a maior porção contínua de Mata Atlântica no Brasil. Um mosaico de reservas livre de fábricas e metrópoles cujos rios confluem para o estuário do Rio Ribeira de Iguape despejando a água limpa da Serra do Mar, que ali se mistura às marés do Atlântico para formar uma sopa salobra riquíssima em matéria orgânica. Esse caldo, farto em nutrientes, faz da região o maior berçário de vida marinha do Atlântico Sul, local de procriação de dezenas de espécies de peixes, crustáceos e moluscos – entre eles a ostra-do-mangue, a única genuinamente nacional. A ostra que em geral se consome no Brasil é estrangeira: uma espécie japonesa, portanto do Pacífico, cultivada em viveiros no litoral de Santa Catarina. É aquela que você já conhece: grande, carnuda e de sabor salino, próprio do mar. As de cá, não: por crescerem em água salobra, tendem a ser ligeiramente mais adocicadas, além de menores, menos suculentas e mais irregulares. Se durante milênios elas serviram muito bem à alimentação dos habitantes do Lagamar – como atestam os sambaquis, depósitos de conchas com dezenas de metros de altura e milhares de anos de idade –, hoje lutam para ser aceitas na gastronomia nacional. Mas isso está mudando. Desde a década de 1990 as comunidades caiçaras de Cananeia, consumidoras tradicionais da ostra-do-mangue, vêm aplicando uma nova forma de cultivo que garante, além de exemplares mais graúdos, fornecimento o ano todo. Antes, o costume era enfiar o pé na lama do mangue, arrancar o molusco das raízes e vendê-lo aos atravessadores locais. Graças a um projeto de manejo desenvolvido pelo Instituto de Pesca, pela Secretaria do Meio Ambiente e por pesquisadores da USP, os caiçaras aprenderam a criar viveiros de engorda, usados até hoje em diversas comunidades da região. As ostras continuam sendo coletadas no manguezal, mas ainda pequenas, no estágio inicial de desenvolvimento, quando são levadas para tabuleiros de madeira próximos, fincados no leito do estuário. Ao contrário das ostras-do-pacífico, que nos viveiros convencionais passam o tempo todo submersas, penduradas em redes cilíndricas conhecidas como lanternas, as de Cananeia atravessam os três ou quatro meses da engorda em situação idêntica à de sua vida no mangue – ou seja, sujeitas ao sobe e desce das marés. Quando o mar sobe, elas se alimentam de toda aquela sopa nutritiva e também aproveitam para desovar (assim, o estuário continua sendo reposto com larvas). Quando a maré baixa, ocorre o que os caiçaras chamam de “castigo”: ostras expostas ao sol, à chuva, ao vento e ao frio, sem comer nem engordar. Do ponto de vista estratégico, não é muito interessante que o molusco permaneça tantas horas sem crescer; mas, nesse caso, essa pode ser uma vantagem comercial: “A ostra se habitua a ficar fora d’água e cria resistência”, explica Ricardo Magalhães, da Guará Vermelho, principal distribuidora do produto no país. “Depois de retirada dos tabuleiros, ela aguenta tranquilamente cinco dias ainda viva, e sem necessidade de refrigeração.” Na prática, isso significa que a ostra chega emanando frescor a qualquer mesa ou mercado da capital. Questão número 1 resolvida. Questão número 2: como fazer a ostra nacional competir com a japonesa, maior, mais carnosa e mais uniforme? Aí é que entra a Guará Vermelho, empresa que já vinha tendo bons resultados com os caiçaras de Ubatuba na produção de vieiras. Em Cananeia, o sistema de parceria com as comunidades locais se manteve, mas Ricardo resolveu testar algumas adaptações no método de cultivo. Não há nada errado com os tabuleiros: o problema é com a ostra-do-mangue, acostumada a viver sobre superfícies irregulares, como raízes ou pedras, o que a leva a se desenvolver de forma um tanto desconjuntada – além de limitada pela própria base onde se prende, já que essa espécie cresce para baixo ou para os lados, nunca para cima. A solução: “semente de ostra”, resume Ricardo. Em outras palavras, são moluscos bebês criados em laboratório e levados aos viveiros ainda diminutos, onde crescerão livres de restrições, apenas se fartando da melhor água do mundo. Os primeiros exemplares já foram coletados em uma das comunidades parceiras, e Ricardo faz questão de botá-los na mesa para mostrar o resultado. Parece uma ostra japonesa. Mas é das nossas. Orgulhosamente brasileira, made in manguezal. |