PAISAGENS GASTRONÔMICAS
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ALMEIRÕES NA CALÇADA
“Ora-pro-nóbis, jambu, pariparoba, cipó-de-alho, galanga, salsa-do-líbano...” Neide Rigo atravessa o quintal como quem conduz uma excursão turística: cada passo que dá é um dedo que ela aponta na direção de uma espécie vegetal. “Olha, cará-moela.” O último censo agrícola daquela casa na Lapa detectou a presença de 55 tipos diferentes de plantas comestíveis em 20 metros quadrados de área – possivelmente a maior biodiversidade de PANCs por hectare da cidade. Talvez do país. “Isso aqui é major-gomes, ali no meio é a brilhantina e essa é a buva”. Já faz um tempo esse levantamento, portanto é uma cifra que precisaria ser atualizada; mas dificilmente será, porque Neide meio que já desistiu de contar, de tanta planta que brota de forma espontânea por ali. “Aqui nasceu guasca, olha.” É o que ela chama de “pomar cuspido”: vai jogando as sementes ao acaso, para ver no que dá. E o que dá, pode ter certeza: é de comer. Até porque Neide se dá ao trabalho de provar absolutamente tudo o que ali germina. Exceto, talvez, a samambaia que ela tem na sala – por sinal, a única planta não alimentícia daquela casa. Sim, Neide Rigo era o tipo de criança que comia salada. “Até jiló.” Não só comia em casa como ainda ia xeretar a cozinha dos vizinhos para ver o que tinha de interessante por lá. Neide cresceu na Brasilândia, bairro da Zona Norte que congregava migrantes do Brasil inteiro, cada qual com seus ingredientes – o que, para ela, significava sempre algo novo chegando nas malas, algo diferente crescendo nos quintais. Taioba, feijão-verde, urucum: “Era o resumo do Brasil perto de mim.” As incursões à casa dos vizinhos, com o tempo, foram se tornando expedições pelo Brasil, de onde Neide – agora já nutricionista formada – sempre voltava com alguma coisa estranha que pudesse render receita. “É, eu gosto de descobrir o que as pessoas não conhecem. A gente tem uma alimentação geralmente tão monótona.” Acabou virando uma espécie de perita em PANCs – sigla imprecisa que abarca as tais Plantas Alimentícias Não Convencionais, ou, como define Neide, “aquilo que não está no mercado”. Claro que esse não é um conceito universal: a ora-pro-nóbis, por exemplo, não tem nada de não-convencional para os mineiros, assim como a vinagreira para os maranhenses. Mas, de modo geral, Neide entende as PANCs como aquelas espécies que desafiam a monocultura, a padronização, o preconceito – muitas são tradicionalmente consumidas por populações em situação de fome extrema – e até o paladar: “Hoje as pessoas querem tudo mais fácil”, lamenta. E, convenhamos, nem todas as papilas estão preparadas para o amargor da uma serralha ou um dente-de-leão. Foi para ajudar os leigos a navegar esse admirável mundo novo que surgiram iniciativas como o blog Come-se, que Neide mantém no ar desde 2006, e o PANC na City, um foraging tour, como ela chama, em que leva um grupo de pessoas a colher matos – que, na verdade, são comida – pelas ruas do bairro onde mora. Ao fim do passeio, o grupo prepara uma salada com a colheita do dia. Um “rango PANC”, segundo ela. O ponto alto da excursão é a Horta Comunitária City Lapa, o canteiro triangular que ela criou em 2014 a poucos metros de casa. Com a ajuda de vizinhos, o que era puro mato virou um jardim de ingredientes como erva-baleeira e sabugueiro, que saíram do quintal de Neide para ganhar nova morada em plena praça pública. Outro que também ganhou as ruas foi o almeirão-roxo, mas este por conta própria. PANCs em geral costumam ter um temperamento um tanto insubordinado, pois crescem alheias à atenção das pessoas nos lugares mais inesperados. O que Neide não previa, contudo, era encontrar o almeirão-roxo que trouxera do sítio do pai crescendo nas calçadas do bairro e até no gramado da vizinha. “Ele não existia aqui na Lapa. Eu conheço tudo que tem aqui”, ela afirma, com a certeza de que, sim, sem querer acabou introduzindo um novo ingrediente na área, graças à grande capacidade que a planta tem de se disseminar. Essa ideia de espalhar a cultura das PANCs em São Paulo às vezes pode ganhar contornos literais. |