Xavier Bartaburu
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SACRACIDADE
A busca do sagrado no centro de São Paulo. Textos e fotos de Xavier Bartaburu. Fotos aqui. 

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Stairway to Heaven

Há mais coisas entre o Céu e a Terra do que uma escada, mas, no terreiro de Mãe Paula e Pai Christian, são só dez os degraus que separam o mundo de lá do de cá. Dez degraus de azulejo e uma porta no meio. “Portal”, como chamam. E neste uma cortina de pano com flores brancas que se abre durante as giras, revelando para o povo aos pés da escada um pouco do teatro de espectros que se desenrola lá dentro. Pelo portal é que penetram os consulentes, conforme vão sendo chamados pelo nome, tragados pelo breu roxo alaranjado como se estivessem voltando ao ventre da mãe em busca de respostas. De lá retornarão minutos depois, regurgitados pelo sagrado e de algum modo renascidos, ou, no mínimo, renovados pelas mensagens de confiança e esperança que ouviram das entidades ali manifestadas. Ninguém desce aquela escada do mesmo jeito que sobe.

O número 604 da Major Diogo já foi pizzaria e oficina mecânica, e ninguém sabe dizer quando foi que surgiu o desnível que deu origem à escada. O fato é que, quando o Núcleo de Umbanda Cacique Pena Branca se mudou para o imóvel em 2004, os degraus já estavam lá. “Não é uma coisa de que a gente gosta, mas serve como um freio”, diz Mãe Paula. “As pessoas chegam muito carregadas da rua. Essa separação faz com que elas se preparem para entrar num lugar que é sagrado.”

Quem duvida que olhe para os dois lados do portal, na parede que serve de divisa entre o mundo físico e o espiritual, onde duas janelas enquadram, cada uma, uma “aldeia”: à direita, as entidades da umbanda (Erês, caboclos e afins), à esquerda os orixás – Oxalá (uma imagem de Jesus), Oxum (uma efígie da Imaculada Conceição), Egunitá (Santa Sara Kali, padroeira dos ciganos), Iemanjá (a célebre releitura da sereia europeia, só que sem o rabo de peixe). Alguém aí falou em sincretismo? Embaixo dos orixás, uma mesa dispõe figuras de ciganos e malandros entre moedas e cigarros. E, ainda mais embaixo, sob a mesa, escondem-se, no breu, os pretos-velhos.

O que nem todo mundo sabe é que, só de entrar no terreiro, você de algum modo já fica imunizado contra a nhaca da rua. À esquerda da porta repousa a trunqueira, uma casinha dentro da casa cuja parede estampa uma imagem de São Jorge (ou Ogum) e uma placa onde se lê “Reino dos Exus” – sentinelas das almas, guardiões das forças espirituais que ali dentro se apresentam. “É a nossa defesa”, diz Mãe Paula. “Vai limpando as pessoas que chegam.” Pelo jeito só as que chegam, mas não as que passam na frente, sobretudo as afeitas a um certo proselitismo antimacumba outrora manifestado na forma de ovos e livros do Edir Macedo que voavam pela fresta sobre o portão. “Tivemos que botar grade”, explica Mãe Paula, ressaltando que agora, sim, a proteção é total.

O piso é frio da porta ao altar – incluindo a escada no centro –, mas o calor é outro antes e depois do corrimão. Dez degraus abaixo, a temperatura é sempre alta nos dias de gira, pelo tanto de gente que se apinha na antessala do sagrado, fazendo fila para pegar ficha e aguardar, de pé ou nas cadeiras de plástico, o chamado do nome. Dez degraus acima, a temperatura é sempre ainda mais alta nos dias de gira, um calor uterino (não digamos infernal) certamente aquecido pelas lâmpadas de cores quentes e pelo rufar dos atabaques, mas sobretudo pela presença incorpórea dos de lá, que toda segunda-feira à noite vêm visitar os de cá e distribuir conselhos sobre tudo quanto é dor que pode afligir um ser encarnado.

Não vamos dizer que a umbanda é a primeira religião cem por cento brasileira porque, né, não nos esqueçamos dos índios. Mas é certo afirmar que a umbanda virou, em número de frequentadores, a maior prática religiosa nascida em solo nacional. As estatísticas juram que eles não são muitos: segundo o censo de 2010, 400 mil pessoas no Brasil, 50 mil no município de São Paulo, mas sabemos que tem muito mais gente por aí acendendo vela para Exu do que se diz. Só no Cacique Pena Branca, segundo Mãe Paula, são atendidas cerca de 1.200 pessoas por semana. Inclusive padre, inclusive pastor. ”A pessoa geralmente vem parar no terreiro quando está lascada na vida. Já foi em tudo quanto é igreja e não conseguiu resolver o problema.”
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Hoje a umbanda é de todos, mas vale registrar: é fé que veio de baixo. A única de que se tem notícia a criar um panteão de excluídos com o qual os pretos, pobres e favelados da nação pudessem se identificar. Feita pelo povo, para o povo. Assim está inscrito no marco fundador, com hora, data e lugar de nascimento: às 20 horas do dia 15 de novembro de 1908, na Federação Espírita de Niterói, aonde Zélio Fernandino de Moraes, jovem aspirante à Marinha, fora levado para tratar de inexplicáveis distúrbios psiquiátricos.

Durante a sessão, conta-se que Zélio desatou a incorporar caboclos e pretos-velhos, os quais o dirigente da mesa pediu que se retirassem, por considerá-los espíritos ‘’atrasados”. Naquele que deve ter sido o primeiro discurso antirracista mediúnico, Zélio, incorporado, retrucou que, se não havia lugar para eles ali, havia de fundar uma nova religião, “que falará aos humildes, simbolizando a igualdade que deve existir entre todos os irmãos encarnados e desencarnados”. Ao fim da preleção, o grand finale: “E se querem saber meu nome, que seja Caboclo das Sete Encruzilhadas, porque não haverá caminhos fechados para mim”. No dia seguinte, Zélio fundaria, em sua casa em São Gonçalo, a Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade, a primeira casa de umbanda do país.

Como não existem registros, a não ser orais, jamais saberemos se isso tudo é fato ou mito (possivelmente uma mistura dos dois). A verdade é que a caboclada já vinha batendo ponto nos terreiros do país fazia algum tempo, em batuques democráticos onde se operava a barafunda habitual desta nossa terra. Deglutia-se de tudo naquela antropofagia anímica: dos orixás africanos às práticas mágicas importadas das pajelanças indígenas, com a desavergonhada inclusão de doutrinas e santos do catolicismo. O que Zélio fez foi organizar a bagunça dentro de uma moldura kardecista, acrescida de francas intenções humanitárias. Em certo momento, não sabemos quando, a nova crença começou a ser chamada de umbanda, palavra quimbunda cujo significado é algo como “lugar onde atuam os sacerdotes”.

Os sacerdotes atuam, mas quem opera a encantaria toda são as entidades, exato espelho do populacho: caboclos, baianos, boiadeiros, pretos-velhos, marinheiros, ciganos, malandros e outros seres que na sociedade encarnada vagam pelas bordas do mundo, mas que aqui, neste palco sagrado, se manifestam como seres superiores destinados a servir de farol no serenar das angústias humanas. Nos centros de umbanda, o Brasil vira do avesso. E todo mundo é bem-vindo.

Vide o altar do Cacique Pena Branca, certamente tão diverso em matéria de divindades – são três andares de imagens – quanto o público frequentador da casa e o corpo mediúnico, ambos multiétnicos, multiculturais e multiclasses. “Nós temos aqui da faxineira ao CEO de empresa”, diz Mãe Paula. Isso tanto no piso abaixo dos dez degraus, entre os consulentes, quanto no de cima, para além do portal, onde todos são iguais no teatro oracular, qual seja a entidade.

E é tanta entidade – sem contar as infinitas ramificações – que cada uma ganhou dia próprio na casa. A cada segunda-feira, uma deidade se manifesta. Imagine, senão, a baderna: caboclo de penacho num canto, Zé Pelintra fumando no outro, Erê chupando bala acolá. E, para não misturar as energias, toda sexta tem gira de esquerda, que é quando se apresentam os Exus e as Pombagiras, seres que, além de guardiões, buscam a evolução espiritual tratando de aconselhar os encarnados – sem papas na língua, o que pode ofender os melindrosos. É por isso que, na abertura dos trabalhos, Mãe Paula avisa ao público presente: “Não pode brigar com a entidade”.

(continua / texto completo no livro)


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