SACRACIDADE
|
Os amigos invisíveis
Os espíritos devem gostar de folhetos, pois ninguém visita pela primeira vez a sede da Federação Espírita do Estado de São Paulo sem sair com ao menos oito deles na mão. E um marcador de livro. O primeiro eu recebi ainda na calçada – o flyer de uma peça de teatro, O Encontro Espiritual de Léon Denis & Joanna de Ângelis –, antes de atravessar a grade que separa a rua do reino dos espíritos. Os folhetos de número 2, 3 e 4 me foram entregues pela diligente Valdeci tão logo galguei os dois lances de degraus de ardósia que me conduziram ao Depoe – Departamento de Orientação Espiritual. Um dos folhetos instruía os pais ou responsáveis quando da presença de crianças no espaço, em outro constava o telefone da Telefeesp (“Uma voz amiga à sua disposição!”) e o último vinha com um trecho do livro Leis do Amor, ditado pelo espírito Emmanuel a Chico Xavier, que explicava de onde vêm os espíritos obsessores. O Depoe é uma sala imensa onde duas dúzias de mesas de madeira com tampo de vidro se alinham em três fileiras. Houvesse máquinas de escrever, seria uma repartição pública da era pré-digital. Mas havia flores. Um vaso pequeno no canto superior direito de cada mesa, que, pela cor, identificava os atendentes. Fui parar na mesa de Marilena (“Aquela atrás das flores amarelas”, me disse Valdeci), mulher de meia-idade, cabelos curtos e olhos ao mesmo tempo compassivos e inquiridores. ━ O que te trouxe aqui? A pergunta deu início a um sutil interrogatório que culminou com o preenchimento de uma ficha, pela qual se pretendia traçar um diagnóstico das minhas necessidades espirituais. A cada pergunta, ela marcava, ou não, o quadradinho ao lado de cada item: “Cansaço ou fadiga”, “Rancor ou mágoa por alguém”. Alguns itens, pude ver na ficha, não eram de se perguntar, mas de observar: “Agressividade extrema”, “Dificuldade para se expressar”. O olhar cirúrgico de Marilena determinava se aqueles quadradinhos deveriam ser marcados ou não. Ela me explicou que a ficha seguiria para uma sala nos fundos do Depoe, onde os médiuns leriam meu prontuário espiritual e, com a ajuda dos amigos invisíveis, determinariam qual seria meu tratamento. Enquanto isso, eu deveria esperar numa salinha intermediária, ao fundo, onde uma tevê transmitia paisagens campestres acompanhadas de ensinamentos de Allan Kardec. Levantei da mesa de Marilena com mais um papel na mão (folheto de número 5) – uma ficha rosa que deveria ser carimbada na mesa de Neyde. Nem bem sentei na salinha, depois de uma providencial ida ao banheiro para fazer xixi, ouvi meu nome ser chamado. Era Antonia, que me conduzia à sua mesa, de flores verdes. Antonia, ao contrário de Marilena, não parecia ter muita paciência. ━ Você vai fazer o tratamento P3E ━ ela me disse, enquanto abria uma apostila na página onde estava impressa a grade horária do referido tratamento, para que eu escolhesse os dias de frequência da série de palestras e de passes. ━ Mas já?! Eu não ia passar pelos médiuns? ━ Você já passou pelos médiuns. Enquanto estava naquela sala, esperando. ━ Mas eu estava no banheiro… ━ Não interessa. Sua ficha foi lida pelo nosso colegiado de médiuns, que determinou seu tratamento. É este aqui: P3E. Antonia não quis me contar o que significava aquela sigla, mas sugeriu que, para acelerar o tratamento, eu praticasse o Evangelho no Lar. E me indicou uma mesa atrás da dela, disposta debaixo de uma placa que dizia “Departamento de Evangelho no Lar”. Mas não sem antes me entregar o folheto de número 6 – uma ficha branca com as indicações do meu tratamento, que deveria ser igualmente carimbada. Bastou que me sentasse para receber as instruções do Evangelho no Lar, ganhei de Cícero mais um folheto (número 7), além de um marcador de livro – este especialmente útil, já que todo o propósito daquela minha quarta interação com pessoas visíveis era aprender a ler da maneira mais eficaz O Evangelho Segundo o Espiritismo. Logo pensei que Cícero devia ser a pessoa visível mais paciente daquele edifício, pois era já o fim da tarde de sexta e ele continuava dando as mesmas instruções a cada indivíduo que se sentasse em sua mesa, sabe-se lá se pela quinta ou décima quarta vez naquele dia. O folheto de número 7 já explicava em detalhes como deveria ser feito o Evangelho no Lar, mas Cícero não se furtava de oferecer novos pormenores. ━ Cachorro pode participar? Pode. Pode pôr vaso de flores para ler com o Evangelho? Pode ━ Ele mesmo fazia e respondia as perguntas, certamente amealhadas ao longo de anos de atendimento espiritual ━ E se ninguém da família quiser ler o Evangelho comigo? Aí você lê sozinho… Sozinho entre aspas, né? Porque nossos amigos espirituais estão sempre do nosso lado. Terminada a etapa das flores e dos folhetos, seguiu-se a etapa das filas. A primeira me conduziu ao interior do salão Cairbar Schutel, onde os atendidos assistiriam a uma palestra rápida de 15 minutos sobre algum tema do Evangelho. No caso, o capítulo IX, “Bem-aventurados os mansos e os pacíficos”, item 8, “Obediência e resignação”, em que se falou da importância de reduzir as expectativas sobre a vida. ━ Agora vocês tomarão um passe. Que assim seja, graças a Deus ━ disse a expositora, dando início a mais uma fila, feita igualmente em silêncio, na ordem em que as pessoas haviam se sentado. Na saída, outra fileira já se formava para a próxima palestra. A fila do passe se estendia do outro lado do corredor do subsolo, às portas da sala 2B, de nome Edgard Pereira Armond. Lá dentro, ainda em fila, eu e os outros atendidos receberíamos dois passes – o primeiro de médiuns dispostos também em fileira, o segundo de médiuns agrupados em conjuntos de três, para “unir as forças”, conforme me explicaram depois. Tudo isso após receber mais um folheto na fila do passe, com ensinamentos ditados pelo espírito André Luiz a Chico Xavier: “O erro ensina o caminho do acerto e o fracasso mostra o caminho da segurança”. Folheto de número 8. A Feesp é uma cidade de dez andares e um subsolo frequentada por pessoas visíveis e invisíveis. As primeiras fazem filas, pegam folhetos e se sentam em cadeiras de madeira e/ou de plástico. Das segundas não posso dizer, porque não as vi. Mas Marcelo, o expositor da minha primeira aula no tratamento P3E, me garantiu que “a assistência não é só para o encarnado”. “Parentes e amigos desencarnados estão aqui também, assistindo a esta palestra”, ele disse, ressaltando que os efeitos dos ensinamentos kardecistas e das irradiações fluídicas proporcionadas pelos passes reverberam também no plano espiritual. Pelo que pude entender, os espíritos povoam o prédio da Feesp em numerosas instâncias: quando acompanham os vivos durante a visita, quando se manifestam nos médiuns e, também, quando vêm à sede da Federação para receber atendimento sem a necessidade de um corpo físico. Nesse caso, os mortos fazem filas idênticas às dos vivos, lotando os corredores e tomando passes (recebendo folhetos também?) com o objetivo de desembaraçar os trâmites para o mundo de lá. “Aqui virou lugar de atendimento para o mundo inteiro”, salienta Silvia Puglia, diretora da área de divulgação e ex-presidente da Federação. Especialmente cheio, segundo ela, em momentos de tragédia ou catástrofe, como atentados terroristas e acidentes de avião – mesmo quando ocorrem do outro lado do mundo. A Feesp também é uma cidade frequentada por grandes nomes da arte ocidental. Os ateliês de pintura mediúnica, por exemplo, são feitos “sob a orientação espiritual do Espírito Renoir, famoso pintor impressionista que se apresentou como o mentor responsável pela equipe espiritual que atua nessa atividade desde o início”, como descreve o material de divulgação da entidade. “Os impressionistas se manifestam bastante”, informa Verena Guimarães, a dirigente responsável pela área. Não consegui entender a razão pela qual os artistas do fin de siècle desenvolveram esse gosto particular em continuar pintando depois de mortos, em vez de um Pollock, por exemplo, mas soube que, há cerca de dez anos, eles decidiram não mais assinar os quadros. “As obras estavam sendo vendidas pela assinatura”, me explica Verena, justificando a atual escolha pelo anonimato. Isso não significa, é claro, que os artistas invisíveis tenham deixado de se apresentar. “Agora mesmo tem uma menina pintando algo que remete a Picasso.” Se o quarto andar do prédio da Feesp é dos pintores, o terceiro pertence aos escritores. Uma vez por semana, divididos em duas turmas, os alunos de psicografia literária se dedicam a treinos de escrita, leitura de clássicos espíritas e análise dos estilos lavrados pela pena mediúnica. Foi, inclusive, contratado este ano um professor de literatura, que tem a rigorosa tarefa de avaliar a autenticidade de cada palavra escrita em nome de um autor falecido. E não são poucos, nem pequenos. “Casimiro de Abreu está com a gente agora. Monteiro Lobato e Eça de Queiroz também”, enumera Sonia Cabral, a dirigente da psicografia literária. “A gente tem um material lindo do Leon Tolstói também, que está sendo analisado pelo nosso professor.” Se no andar de cima os espíritos dos pincéis optaram pelo anonimato, aqui os das letras são menos modestos: assinam mesmo – o que, segundo Sonia, exige cuidados redobrados antes de publicar qualquer obra, daí a presença de um especialista. Vai que aparece algum espírito zombeteiro se fazendo passar por Machado de Assis. Mas falemos dos vivos. Cerca de 3,8 milhões de brasileiros se disseram espíritas no censo de 2010; 1,4 milhão a mais do que em 2000, o que indica um claro aumento da adesão à doutrina kardecista entre nós. Somos a maior nação espírita do mundo em número de adeptos. Nem na França, onde nasceu Allan Kardec, o espiritismo fez tanto sucesso. Aqui, foi imediato. Menos de uma década depois do lançamento da obra inaugural da doutrina, O Livro dos Espíritos, em 1857, já se fazia a primeira sessão espírita do Brasil, em Salvador. Em 1875, no Rio de Janeiro, publicava-se a primeira versão em português do livro. E em 1884 nascia, na mesma cidade, a Federação Espírita Brasileira, cuja presidência seria assumida mais tarde por Adolfo Bezerra de Menezes, conhecido por estabelecer a base sobre a qual se definiria o espiritismo brasileiro – uma doutrina religiosa dedicada à assistência espiritual e à caridade. Até então o espiritismo no Brasil era particularmente popular entre a elite intelectual, uma vez que lançava um olhar inovador, científico e filosófico sobre os fenômenos espirituais. Além de tudo, vinha de Paris (era chique, portanto). Kardec só chegou às favelas quando se tornou altruísta, oferecendo suporte material, médico e espiritual a comunidades de quem Deus e o governo pareciam ter se esquecido. Só isso já teria bastado como razão para o sucesso do espiritismo no Brasil, mas devemos acrescentar também o fato de que, para o povo, transes mediúnicos e pessoas falando em nome de gente falecida não eram coisa tão estranha, dado que tanto índios quanto escravos já o faziam. Terra fecunda para o florescimento da doutrina kardecista, o Brasil só precisava de um emissário com carisma suficiente para propagá-la. Entrou Chico Xavier na história e o espiritismo, em quatro décadas, explodiu em número de adeptos. Em 1940, cerca de 400 mil brasileiros se diziam espíritas; em 1980, eram já 1,5 milhão. A Feesp nasceu bem nesse momento de ascensão, quando o crescente número de centros espíritas no Estado passou a exigir a necessidade de uma entidade reguladora. A Federação foi criada em 1936 e, dois anos depois, se mudou para o casarão da rua Maria Paula, que seria sua sede pelos cinquenta anos seguintes. Na época, chamava-se Casa dos Espíritas do Brasil e tinha meia dúzia de salas; na maior, cabiam só trinta pessoas. A figura-chave desses inícios é a de Edgard Pereira Armond (o nome da sala onde tomei passe), tenente-coronel reformado que assumiu a direção da entidade nos anos 1940 e permaneceu três décadas ligado a ela, ajudando a dar-lhe a cara que tem hoje, inclusive no que diz respeito ao sistema de atendimento espiritual (as filas). Armond, contudo, não estava só: recebia sempre as orientações, em espírito, de Bezerra de Menezes, que em dado momento mandou a seguinte mensagem: “No mundo, o Brasil; no Brasil, esta terra que tem o nome do grande Apóstolo; e aqui, esta nossa casa, que será um farol a iluminar a humanidade.” Sim, o “farol” era a Feesp. “Haja responsabilidade, viu?”, comenta Silvia Puglia. A sede atual, o edifício Allan Kardec, foi construída nos anos 1990 no endereço onde antes estava o casarão. Todos os dez pavimentos erguidos com a ajuda de doações, que é basicamente a forma como a Federação se mantém, além da renda obtida com a venda de livros (a Editora Feesp tem mais de 120 títulos no catálogo), o café Nosso Lar, no térreo, e a realização da Festa Típica Francesa em Homenagem a Allan Kardec, que todo ano soma alguns milhares de reais ao caixa da entidade com a venda de cassoulets, quiches, crepes e baguetes. De resto, tudo na Feesp é gratuito, dos tratamentos espirituais aos ateliês de pintura mediúnica. “Dai de graça o que de graça recebeste”, foi a frase de Chico Xavier que mais ouvi aqui, todos fazendo questão de ressaltar o caráter humanitário da doutrina (vale lembrar que o mais famoso médium do país não ficou com um centavo decorrente da venda dos mais de 400 livros que psicografou). “São dons que a gente recebe de graça”, explica Silvia Puglia. ”Não podemos cobrar por eles.” Cinco mil pessoas visíveis prestam serviço na Feesp, e nenhuma delas cobra. Marilena, Antonia, Cícero, Verena, Sonia, Silvia: todos são voluntários, parte de um monumental contingente mediúnico – sem contar os assistentes desencarnados, outros milhares, quiçá milhões – dedicado a aliviar as aflições de quem quer que atravesse o portão da rua e faça aquelas filas. Como o P3E a que fui indicado, há dezenas de outros tratamentos, conforme a necessidade: depressão, obsessão, doença física, dependência de drogas. E não é pouca gente: de 7 mil a 10 mil atendimentos por dia. Três milhões por ano. Some os serviços de assistência social que a entidade presta em suas outras quatro unidades (cursos profissionalizantes, asilos e creches) e o número de atendimentos baterá nos 15 milhões. Só de alunos são 8 mil no momento, integrantes de um longo programa educativo que pode chegar a durar anos. Ou uma vida inteira: um ser humano recém-encarnado pode começar no curso de Educação Espírita para Bebês, que “visa levar o Evangelho de Jesus à luz da Doutrina Espírita às crianças na faixa etária de 0 a 2 anos”, seguir com a Educação Espírita para a Infância e Juventude, dos 3 aos 15, e emendar com a Educação Espírita para a Mocidade, a partir dos 16. Adultos podem entrar a qualquer momento no curso “O que é o Espiritismo?”, que dura um ano, e depois continuar com o Curso Básico, no qual se destrincha ao longo de dois anos O Livro dos Espíritos. Leva-se outros dois anos no Aprendizes do Evangelho, curso voltado à parte teológica da doutrina, e mais dois na Educação Mediúnica, que é onde os alunos descobrem e desenvolvem sua mediunidade, seja ela qual for: psicometria, psicografia, psicofonia, doação de fluidos e outras tantas. Espíritos sedentos por conhecimento podem ainda encarar mais um ano de ensinamentos no Curso de Dirigentes e Monitores, destinado às atividades de coordenação, e passar o resto desta encarnação mergulhados nos cursos da Educação Continuada, grupos de estudo voltados aos mais diversos temas, como a análise das obras de André Luiz e conhecimentos de Ciência Espírita, Psicologia Espírita e Antropologia Espírita. E, entre uma aula e outra, ainda é possível fazer parte do grupo de teatro da casa e do coral e orquestra Carlos Gomes, onde se aprende a cantar clássicos da doutrina como o “Hino dos Aprendizes do Evangelho”. Sempre é recomendável, no entanto, antes de fazer qualquer curso, completar o tratamento espiritual indicado pelo colegiado de médiuns. No meu caso, o P3E. Em minha primeira aula, em pouco mais de uma hora, aprendi que há cerca de 30 bilhões de desencarnados no planeta (quatro para cada pessoa visível) e que existe uma coisa chamada “programação espiritual”, em que o espírito que nos governa escolhe um corpo para habitar e dele fazer um instrumento de evolução, por meio de desafios pré-programados. “Ninguém está aqui a passeio”, explicou Marcelo, o expositor. Também tomei três passes durante a aula: o primeiro dado por Olga, uma senhora levemente corcunda, e os outros dois dentro de uma sala, por dois grupos de médiuns. A turma de alunos era pequena, mas nem por isso deixava de haver filas na hora do passe. Afinal, de bagunça já chega a vida lá fora. Aqui, tudo é ordem, serenidade e esperança – uma utopia possível que seguramente ajuda muita gente a suportar a dor e a delícia de estar vivo. Saí da Feesp começando a entender o que move quase 4 milhões de brasileiros. E ainda ganhei mais um folheto, uma citação do espírito Meimei soprada a Chico Xavier: “Dá o teu toque de amor e Deus fará o resto”. Folheto de número 9. |