SACRACIDADE
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Deus é travesti
O reverendo Cristiano anda meio incomodado com Jesus. Não com o filho de Deus em si, mas com a forma como ele tem dado as caras por aí nos últimos 2 mil anos, inclusive dentro da Igreja da Comunidade Metropolitana: um Cristo branco, loirinho, mais europeu do que semita, nem de longe parecido com a maior fatia do contingente populacional brasileiro. Enquanto pensa se muda ou não essa representação, Cristiano se regozija com a pequena subversão aplicada ao Jesus Misericordioso, aquele que uma freira polonesa viu irradiar raios azuis e cor-de-rosa. “Achamos isso muito heteronormativo e resolvemos mudar.” Do coração de Cristo agora se propaga um arco-íris bafônico, impresso em santinhos em cujo verso consta um Credo importado da Indonésia, onde se leem coisas como “Creio nos direitos humanos” e “Creio em Jesus Cristo, que veio para nos libertar de toda opressão”. E isso não é nada. No máximo, uma traquinagem. Subversivo mesmo é botar no púlpito gays, lésbicas e travestis. É deixar um pastor mudo subir no altar para celebrar um culto inteiro em Libras (com tradução simultânea para o português). É não obrigar ninguém a se confessar antes de comungar. É não se meter na vida sexual de fiel nenhum (pelo contrário: aqui se diz que o corpo é um instrumento sagrado). Subversivo mesmo, escandaloso até, é pregar a ideia de que Jesus é a versão transgênera de Deus, e ainda por cima usar as Escrituras para justificar tal tese. “A Bíblia diz que o verbo divino se fez carne e habitou entre nós”, explica o reverendo Cristiano. “Nós gostamos de parafrasear isso e dizer que Deus se travestiu de carne. Ele quis sair do armário da onipotência e assumir uma nova identidade. Quis assumir a dor e a delícia de ser humano.” A Igreja da Comunidade Metropolitana não é uma igreja gay, nem trans, nem sequer inclusiva ela é. “Somos uma igreja afirmativa”, define Cristiano Valério, um dos fundadores da ICM em São Paulo. A inclusão, ele alega, supõe uma ideia de poder, uma arrogância disfarçada que, nas entrelinhas, mantém os excluídos e as minorias no estrato inferior ao qual já pertencem, um pouco abaixo dos cristãos de bem. Algo na linha “Deus é tão bonzinho que aceita até as bichas, os sapatões e as travas”, como ilustra, de maneira bem didática, o reverendo. Daí que a ICM seja conhecida pelo mundo como a “igreja dos direitos humanos”, com tudo de libertário, esquerdista, iconoclasta ou qualquer outra coisa que cause horror aos carolas que o termo possa sugerir. Não poderia, portanto, ter nascido em outra época senão nos anos 60, precisamente em 1968, quando o pastor batista Troy Perry fundou o primeiro templo da ICM em Los Angeles, com doze participantes. O homem não quis perder tempo: no ano seguinte, já celebrava a primeira cerimônia pública de casamento entre pessoas do mesmo sexo nos Estados Unidos. Hoje a ICM congrega 60 mil membros em mais de quarenta países, inclusive lugares que gostam de botar a turma LGBT na prisão, como Nigéria, Quênia e Malásia. No Brasil existem catorze comunidades; a mais antiga é a do Rio de Janeiro, criada em 2003. Em São Paulo, os primeiros encontros aconteceram em 2006, na casa de Cristiano Valério, ex-católico, ex-testemunha de Jeová, ex-adventista, ex-batista e, naquele momento, um aspirante a pastor da ICM. Eram treze membros, todos gays, exceto um casal hétero, vizinhos de Cristiano. Depois os cultos se mudaram para o Príncipe Hotel, na São João, e, em 2010, a igreja já tinha sede com placa na porta: uma sobreloja quase colada à Igreja de Santa Cecília, hoje mantida pelo valor de 4 mil reais mensais – cada centavo pago por meio de doações. Se sobrar, vai para o caixa. Ninguém na ICM recebe salário, nem mesmo o reverendo (que trabalha com RH quando não está no púlpito). Todo mundo é voluntário. E todo mundo, se quiser, pode virar diácono(isa), pastor(a) ou reverendo(a). Seja L, G, B, T ou qualquer outra letra que inventarem. A natureza afirmativa da ICM acaba atraindo, evidentemente, mais homossexuais do que héteros, embora estes também apareçam nos cultos – em geral vítimas de preconceito em outras igrejas, como gente divorciada e/ou vivendo um segundo casamento. O rebanho de proscritos inclui também pessoas transgêneras (poucas, ainda) e um punhado de deficientes auditivos, especialmente entusiasmados na hora dos cânticos, quando transformam o léxico de Libras em uma vibrante coreografia de dedos e mãos. O culto, na forma, até que é bem comportado. Tem os cânticos de louvor – com as letras projetadas em PowerPoint –, tem leitura do Evangelho, comunhão, homilia e pai-nosso, tudo com tradução simultânea em Libras. Tem até réplicas de vitrais no fundo do altar. O que faz da ICM uma igreja diferente das evangélicas, todas elas, é quem está no púlpito. Se não é o reverendo Cristiano, gay, será uma pastora lésbica. Ou o diácono Fábio Sorriso, deficiente auditivo. Se não for nenhum desses, será a pastora, muito em breve reverenda, Alexya Salvador. Alexya nasceu Alexander, menino de Mairiporã criado em berço católico, frequentador compulsivo de missas desde os 7 anos, porque “lá era o único lugar onde eu não apanhava”. Alexander foi catequista na adolescência, seminarista aos 24 anos e atormentado durante quase toda a juventude, dividido entre o amor a Deus e o prazer dos homens. Saiu do armário quando saiu do seminário. O pai falou: “Se você for veado, eu te aceito. Mas se você se vestir de mulher, eu te mato”. Alexander renasceu Alexya em 2011. Tinha 31 anos e um marido, Roberto, com quem se casara quatro meses antes pela ICM, vestindo “fraque com cauda perolada e coroa”. Isso foi em junho, quando Alexya ainda era Alexander. Em agosto, tornou-se diácono. Em outubro, transicionou: “A partir de hoje, é diaconisa Alexya”, chegou dizendo na igreja. Só Cristiano sabia. E Roberto, o marido, claro, que acompanhou de perto todo o processo até finalmente aceitar que, dali em diante, teria uma esposa. A família soube depois e, por fim, o pai. Seu Amadeu estava chupando laranja quando Alexya chegou de cabelão, vestido e salto alto. Ela disse: “Não sei o que você está vendo aqui, mas essa sou eu. A partir de hoje, é Alexya”. O pai pegou o carro e sumiu, furioso. Uma semana depois, veio pedir perdão, chorando. “Faz um ano que ele começou a me chamar no feminino.” E seu Amadeu, quem diria, virou avô. Em 2015, Alexya obteve a guarda de Gabriel, menino com necessidades especiais (“Mas você vai querer adotar logo o doidinho?”, disseram). Virou a primeira trans do país a conquistar o direito de adoção e a ter licença-maternidade (Alexya é professora do ensino fundamental). Dois anos depois, a insólita família Salvador ganhou mais um membro: Ana, menina transgênera. Foi, também, a primeira vez no país que uma mulher trans adotou uma criança trans. E, no meio disso tudo, Alexya, incorrigivelmente afeita à vanguarda e ao babado, se tornou a primeira pastora trans do Brasil. (continua / texto completo no livro) |