SACRACIDADE
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O insuportável silêncio
1. Quarenta minutos de zazen. Um cão. Um helicóptero. Duas marteladas nalguma estaca. Não, três. Silêncio. Outro helicóptero (para que tantos?). Agora uma sirene. Longe, mas audível. O zazen já começou e são treze pessoas na sala. “Vocês vão só sentar e respirar”, informou a instrutora no início da sessão (“Meu nome é Cristina, mas aqui sou Shinsei”). “Tentem não alimentar os pensamentos. Deixem ir e vir. É uma forma de conhecer a nossa mente.” Minha mente é um inferno, já sei. Mas é para isto, calculo, que serve a meditação: tentar tornar o cérebro, senão um paraíso, ao menos um lugar habitável. O zazen talvez seja uma das poucas formas de meditação, entre as centenas que existem, que é inteiramente ritualizada. Tudo é gesto e forma: o modo de se sentar, a forma de se levantar, a maneira de afofar a almofada, a posição das mãos quando de pé, a posição das mãos quando sentado, a copiosa distribuição de reverências em gasshō (com a palma das mãos juntas) a tudo que seja digno de respeito: a sala de meditação, os colegas de meditação, a almofada de meditação (o zafu). “É para ajudar a disciplinar a mente”, explica Cristina/Shinsei. E discipliná-la será crucial para suportar os oitenta minutos de silêncio do zazen, divididos em duas sessões de quarenta – tempo suficiente para estreitar o convívio não só com a mente como também com a parede de madeira diante da qual cada um se senta com os olhos semiabertos, até se tornar íntimo de cada nó, sulco ou veio daquela chapa que um dia foi árvore. Mais um helicóptero. Mas, gente, por que tantos helicópteros na Liberdade? Opa. Mente divagando. Volta. Respira. (...) Buzinas. O cão, de novo. Lá pelo minuto 12 (ou será 15?) descubro que há coisas no mundo, tanto vivas quanto inanimadas, que gostam de se manifestar de forma rítmica. Como relógios e corujas. O relógio certamente está lá desde o começo, mas só notei no meio da meditação. A coruja, não; esta eu ouvi logo quando começou a piar (deduzo que seja uma coruja, mas pode ser outra ave que tenha apreço por cantos em forma de metrônomo). Ambos me acompanharam a meditação toda. Coruja e relógio. A cidade fala e a sala também. O cara da minha esquerda gosta de engolir a saliva de vez em quando. O de trás espirrou umas três vezes já. O da direita começou respirando de maneira tão pesada que até a sala do lado deve ter ouvido, mas agora ele está em solene silêncio, e cada vez mais curvado. Dormiu? Morreu? No minuto 23, talvez 27, minhas vísceras começaram a falar também. Talvez sejam gases. Ou fome. Ou a coxinha do lanche. Sim, a coxinha. Maldita mania essa minha de comer comidas suspeitas na rua, bem que eu achei que a coxinha não estava com cara de saudável, ou será que o não saudável aqui sou eu?, eu e minha gastrite, essa gastrite dos infernos, cultivada à base de coxinhas suspeitas, e esfihas também, aindamaisessasdecarne,aindamaisessasdocentro,aindamaiscaralhojáestoudivagandenovomentemalditaporquenotecallas? Para. Volta. Res. Pi. Ra. (...). Silêncio. Agora um avião. As marteladas voltaram. E um passarinho começou a fazer dueto com a coruja. Toca o sino. Acabou a primeira parte do zazen. Passou rápido, até. 2. Um koan.* Quando Yaoshan estava sentado meditando, um monge perguntou: – O que você pensa quando se senta nessa imperturbável serenidade? Yaoshan disse: – Em penso em não pensar. O monge perguntou: – Como você pensa em não pensar? Yaoshan disse: – Não pensando. * Koans são charadas propostas pelos mestres zen a seus discípulos como forma de aguçar a mente na busca de compreender melhor os ensinamentos budistas. Este foi recolhido por Dogen Zenji, monge do século 13 que foi um dos introdutores do zen-budismo no Japão. 3. Quatro perguntas para sensei Handa. Francisco Handa é mestre e doutor em História, autor de teses sobre o passado da Amazônia. Mas não tem nada de amazônico nele: nasceu nissei, no interior de São Paulo, e se ordenou monge zen em 1987. No entanto, dedicou três décadas à floresta. “Meu treino de vida foi para a academia. Não foi para ser monge.” E então desistiu. Em 2001, “quando a bolsa da Capes acabou”, Handa tornou-se monge em tempo integral, “não mais de fim de semana”. Hoje, pode-se encontrá-lo diariamente no Templo Busshinji, das 6 da manhã às 8 da noite, conduzindo sessões de meditação, realizando cerimônias e fazendo a limpeza das salas. Uma vez por mês, medita no alto do Copan. Nas horas vagas, escreve haicais. O que é o budismo? O budismo é crítica à linguagem. O mundo em que a gente vive é o mundo da linguagem. Através da linguagem é que você cria as ideias, e chega ao ponto de acreditar que a linguagem dá conta de explicar a realidade. Essa é a questão. O budismo é você tentar ir ao ponto anterior à criação da linguagem. A linguagem não dá conta de entender a realidade – linguagem é sombra. Quando você pensa, você não está pensando, você está criando linguagem. Atribuindo sentido. Você analisa, valoriza, discrimina. Nesse momento, você caiu na ilusão. É possível esvaziar a mente? Isso não existe. O que eu posso fazer é diminuir o fluxo mental. É a mente atenta. Você faz o zazen com a mente atenta. Vai sempre aparecer alguma coisa na mente, agradável ou desagradável. Como a tua mente vai agir em relação a isso? É uma forma de treino. Qual o melhor caminho para a iluminação? Para o zen-budismo, a iluminação é próxima da compaixão. Um ser iluminado é um ser compassivo. No budismo não existe eu e o outro, não tem essa separação. O sofrimento do outro pode ser o seu sofrimento. Se eu for te ajudar porque tenho pena de você, porque te acho um coitado, eu já separei, já te julguei. Já criei vaidade. A iluminação é você poder acabar com o teu sofrimento e então poder ajudar o outro. Caso contrário, você vai ser um cego conduzindo outros cegos. O que é tão sedutor no budismo aos ocidentais? É o antidiscurso. Eu não prometo nada. Você só vai sentar e ficar quieto. Isso é muito atraente também. As pessoas buscam muito sermão; gostam muito da palavra, da linguagem. E o zen-budismo é muito simples. Não tem aula ou ensinamento. O importante no zen é a tua experiência. Quando pensam em budismo, as pessoas imprimem muita filosofia, muita metafísica. Fica tudo muito platônico. Tem que ser mais aristotélico. 4. Sessenta e dois anos de zen-budismo. O budismo deve ter chegado ao Brasil a bordo do Kasato Maru, junto com algum dos 781 japoneses embarcados no primeiro navio de imigrantes orientais ao país. Não na forma de monges, muito menos na intenção de erguer templos: o governo brasileiro desencorajava de maneira enfática a vinda de religiosos que não fossem católicos ao país. O budismo que aqui desembarcou veio trazido numa mala, contido nos altares que cada família levava com ela. E isto bastava: acendia-se um incenso, orava-se aos ancestrais e, na falta de um sacerdote, chamava-se um leigo versado nas rezas para conduzir as cerimônias quando fosse necessário. É bem possível que houvesse monges entre os 186 mil japoneses que chegaram ao Brasil entre 1908 e o começo da Segunda Guerra, mas decerto eram poucos e, oficialmente, se apresentaram como lavradores. Nem era grande o interesse desses primeiros imigrantes em fazer do país endereço definitivo: a ideia era ganhar dinheiro e voltar o quanto antes ao Japão. Para que construir templos, então? Contudo, mesmo que provisória, a vida no Brasil começou a ficar complicada para as segundas gerações: durante a Era Vargas, a partir dos anos 1930 – e pior durante a guerra, quando o Japão se tornou nação inimiga –, o governo passou a desencorajar também o próprio exercício da cultura japonesa. Os brasileiros, além disso, não viam com bons olhos aquele povo estranho, que não falava língua de cristão nem se misturava com os da terra. Junte-se ainda uma diretriz explícita do governo japonês incitando os nikkeis a se adaptar à cultural local, temendo o fim da imigração, e veremos então um contingente imenso de japoneses se convertendo ao catolicismo. Bastava batizar os filhos e logo se criavam laços de compadrio com a vizinhança. Se o budismo continou sendo praticado nessa época, foi em extremo sigilo. Uma exceção foi a construção, em 1936, na cidade de Guaiçara, interior de São Paulo, do primeiro templo do Budismo Primordial, seita criada no Japão no século 19. Terminada a guerra, e derrotado o Japão, os nikkeis tiveram de se conformar com a ideia de ficar no Brasil. Uns continuaram em seu esforço de adaptação à cultura local, outros reavivaram sua fé em Buda incentivando a vinda de missões oficiais – dois milênios e meio depois de criado, o budismo entrava pela porta da frente no país (e entrava japonês: outras linhas budistas, como a tibetana e a theravada, chegariam muito tempo depois). Entrou de muitas formas, quase que simultâneas, representado pelas diversas escolas budistas que existiam no Japão naquele momento. Uma delas era a Soto Zen, que aportou em São Paulo no ano de 1955, instalando-se na Liberdade. Ali seus seguidores compraram uma casa e criaram o primeiro templo zen-budista da capital. Chamou-se Busshinji, Templo do Coração-Mente de Buda. Zen vem do chinês ch’an, que vem do sânscrito dhyana – um estado meditativo que, quando praticado com empenho, pode, segundo o budismo, levar ao mesmo estado de iluminação a que chegou o príncipe Sidarta Gautama: o Buda, que quer dizer “desperto”. Façamos o caminho inverso e chegaremos a Bodidarma, monge indiano que no século 5 ou 6 introduziu essa prática na China, onde monges japoneses, no século 13, a teriam aprendido e levado ao Japão. Duas grandes escolas surgiram daí: a Rinzai – cuja prática se concentra nos koans, exigindo portanto grande atividade mental – e a Soto – que aposta na força do zazen, a meditação sentada, buscando o aquietamento da mente. “O zazen é uma prática de monge, não de leigo”, explica Francisco Handa. Mas foram leigos, e não monges, os que afluíram para o Templo Busshinji nos seus primeiros anos, atraídos pela crescente popularidade do zen-budismo no Ocidente e, também, pelo esforço do monge Ryohan Shingu, que assumiu o cargo de superintendente do templo em 1956 e nele permaneceu até morrer, em 1986 – três décadas de abertura gradual do zazen aos brasileiros, empreendida por meio de palestras (em japonês), retiros e sessões de meditação. O que sempre foi uma prática monástica tornou-se um bem-vindo respiro de ordem e silêncio para suportar o desvario da metrópole. E que não exigia de seus praticantes nem dinheiro nem estudo. Apenas tempo. Em 1994, a velha casa foi demolida para dar lugar ao templo atual – rigoroso exemplar da arquitetura religiosa japonesa cujo primeiro monge a assumir sua direção, a propósito, não foi um japonês. Foi uma brasileira, e mulher: Cláudia Dias de Souza, a hoje célebre Monja Coen. “Aqui não é templo de mulher!”, diziam as senhoras japonesas quando a monja chegou. “Templo de mulher é templo pequeno.” E o Busshinji, bem, era o maior da cidade. Passado o espanto, a nova sensei acabou conquistando a confiança da comunidade justo pelo fato de não ser japonesa: “As senhoras de idade vinham me pedir para fazer as cerimônias memoriais em português”, conta a monja. “Elas diziam: ‘Meus netos não falam japonês, e eu não falo português para poder explicar. Explique a minha religião para eles!’.” Foi surgindo, assim, um templo híbrido, misto de centro de meditação – frequentado em grande medida por brasileiros, em número cada vez maior, graças à presença da Monja Coen – e centro cultural, núcleo de manutenção de numerosas tradições japonesas. Ainda hoje o Busshinji tem farta programação educativa composta por atividades mais japonesas do que propriamente budistas, como aulas de ikebana (arranjos florais), shodō (caligrafia), sumi-e (pintura) e haicais (poemas). E, para além dessas, aqueles momentos em que cultura e religião se confundem, como é o caso de casamentos, batizados e cerimônias memoriais que ainda atraem os nikkeis ao templo – ainda que a Liberdade hoje seja mais chinesa que japonesa. Das cerimônias, a mais popular é a dedicada a Kannon, espécie de divindade feminina venerada pelo seu poder de compaixão. Uma vez por mês, o templo recebe as preces de dezenas de pessoas e a elas oferece uma refeição gratuita, preparada por senhoras voluntárias. Essa pessoas – japoneses na maioria, mas também gaijin – formam fila para render estranho culto à imagem que, no templo Busshinji, recebeu o nome de Aparecida Kannon da Paz Universal – referência explícita à padroeira nacional. “Uma é mais ou menos parente da outra”, diz Francisco Handa. É uma forma, ele explica, de atrair os não budistas e neles despertar o sentimento de compaixão. Nem precisa participar da cerimônia, na verdade: basta passar na frente do templo para receber as bênçãos. Sempre que o sino toca, é como se fosse a voz de Buda. “Nesse momento”, diz o monge, “você se ilumina.” 5. Mais quarenta minutos de zazen. Coruja, pássaro, helicóptero, cão, tudo parece ter voltado com força redobrada. Será o horário? Está anoitecendo já. Ou sou eu que estou ouvindo a cidade numa espécie de realidade aumentada? Onde nada acontece, tudo é assunto. O relógio, a saliva, as vísceras, tudo ganha volume e importância no meio do silêncio. Mas o silêncio não existe. Quando não é a cidade lá fora, é o corpo. O teu e o do outro. Quando não é o corpo, é a mente. E esta jamais se cala. Estamos na segunda parte do zazen, mais quarenta minutos de frente para a parede de madeira, depois de ter praticado dez minutos de kinhin. Se zazen é a meditação sentada (za é “sentar-se” em japonês), kinhin é a meditação caminhada: um meio passo de cada vez, as mãos em sheshu (a esquerda fechada sobre o peito, a direita em cima), todos em fila, dando a volta na sala de meditação. Andei cinco metros em dez minutos. O cara que estava à minha direita (o da respiração pesada) não está mais. Não voltou para a segunda parte do zazen. Talvez tenha desistido. Minha bexiga dá sinais de que quer desistir também, assim como meus músculos intercostais. A virilha já reclama das pernas cruzadas. E o gosto do lanche volta e meia atravessa o esôfago na direção contrária à da digestão (olá, coxinha). Todos na sala devem estar cansados, pois a incidência de salivas engolidas, tosses e fungadas aumentou. Pior é quando a mente se cansa, que aí ela mergulha em tenebrosos territórios povoados por raivas indigestas, angústias e medos paralisantes. Alerta máximo quando isso acontece, pois raiva, angústia e medo costumam ser lugares gostosos de se habitar. Quanto mais o ódio se aconchega, mais difícil é sair. Ou é isso ou são os planos para o futuro, breve ou distante: com que restos da geladeira vou fazer o jantar, onde vou passar o fim de ano, se devo ou não mudar de cidade, ou de profissão, ou de vida. Tudo isso num segundo: no instante de uma exalação, muitas décadas nos contemplam. O espaço entre a paz mental e a crise existencial é de apenas um diafragma de distância. Volto a ouvir coruja, saliva e avião, e os pensamentos se dissipam. Ouvir o outro é a cura. Mesmo quando o outro é a cidade. Mesmo quando o outro é o teu corpo. Mesmo quando o outro é a tua própria mente, ouvida a distância, sem embarcar em seu desvario, como um psicanalista de si mesmo escutando a mente no divã. Já que esvaziá-la é impossível, que se tente ao menos preenchê-la com pensamentos virtuosos, atentos ao outro e ao mundo. “Nossa mente é como um balde de água suja”, explica o monge Sato ao fim da meditação. “Precisamos esperar que a sujeira se deposite no fundo para poder bebê-la.” Mas a sujeira, ele ressalva, sempre volta. “Aí esperamos ela se depositar no fundo de novo.” E de novo. E de novo. 6. Mais um koan. Zhaozhou perguntou a Nanquan: – Qual é o Caminho? Nanquan respondeu: – A mente comum é o Caminho. – Devo ir em direção a ela? – Zhaozhou perguntou. – Se você tentar ir em direção a ela, você estará se distanciando dela – respondeu Nanquan. Zhaozhou perguntou: – Se eu não tentar, como saberei que é o Caminho? Nanquan disse: – O Caminho não tem a ver com saber ou não saber. Saber é uma ilusão. Não saber é ignorância. Se você verdadeiramente compreender o Caminho, será como o céu: vasto, claro e infinito. Não se pode provar sua existência, nem negá-la. Zhaozhou imediatamente compreendeu o profundo ensinamento. Outro koan recolhido por Dogen Zenji. 7. Uma citação. De Friedrich Nietzsche, em O Anticristo: “O budismo é uma religião para o fim e para o cansaço da civilização”. |