SACRACIDADE
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O hálito de Deus
Quarta não é dia de ir à missa, muito menos às 9 da manhã. Mas a igreja está cheia. Do primeiro ao último banco, vieram todos ver o padre Mário. É a única vez na semana em que ele vem a público, e correm rumores de que não deve tardar a se aposentar. Trata-se, afinal, de um homem de 91 anos que já tem a coluna torta e a boca quase sem dentes – no entanto, ainda capaz de rezar uma missa inteira com as pernas eretas e a voz firme de quem já deve ter arrancado incontáveis demônios do corpo de homens e mulheres. Mário Hisatugo não é, nem nunca foi, o exorcista oficial da arquidiocese, mas relatos apócrifos de rituais de despossessão diabólica conduzidas por ele lhe concederam essa fama. E é por isso que a igreja de São Gonçalo está cheia. A missa é o de menos. Tanto é que muita gente chega com a missa em curso, alguns com a cerimônia perto do fim, lá pelo pai-nosso. O fim não é um fim: no lugar do ide-em-paz, os assistentes do padre distribuem entre o público uma folha amarfanhada, levemente borrada, onde consta a “Oração para Cura Interior”. Em coro, todos de posse da folha, os fiéis declaram: “Renuncio a Satanás, aos espíritos malignos e a todas as suas obras”. Em seguida, o padre Mário saca um caderninho com capa de plástico e lombada em espiral. É a deixa: quase que ao mesmo tempo, os fiéis tiram de suas bolsas e mochilas terços, crucifixos, roupas, pacotes de sal grosso, fotos de parentes (em papel, tablet ou celular) e garrafas pet de 500 ml ou 1 litro preenchidas com água mineral à espera de se tornar água benta. Há também um boné vermelho, alguns passaportes e um pote de farinha de berinjela (não pude saber se o que havia dentro era mesmo farinha de berinjela). Quem chegou cedo teve a chance de depositar os objetos na balaustrada diante do altar, na esperança de que as irradiações de cura do padre Mário chegassem com mais força, como uma cusparada divina. O caderninho é uma versão resumida, xerocada pelo padre, do Ritual de Exorcismo e Outras Súplicas, publicado originalmente em 1614, durante o papado de Paulo 5º – conhecido particularmente por perseguir Galileu Galilei e sua teoria de que a Terra girava em torno do Sol –, e depois revisado em 1998, sob ordem de João Paulo 2º. O livro compila orações, ladainhas e instruções explícitas de como expulsar o maligno do corpo de um cristão, incluindo “fórmulas imperativas” como “Nós te exorcizamos, espírito imundo, potência satânica, invasão do inimigo infernal, legião, reunião ou seita diabólica” – voltadas, no caso da missa do padre Mário, a fotos, garrafas de água mineral e potes de farinha de berinjela. Mas este ainda não é o clímax. Na sequência, o padre Mário larga o caderninho sobre a mesa do altar, fecha os olhos, ergue as mãos e enrijece as palavras, invocando Jesus, a Virgem e outras entidades da corte celestial, com o objetivo de extirpar “malefícios, feitiços e bruxarias”. Terços, fotos, roupas, garrafas, tudo que os fiéis têm nas mãos se eleva no ar, acima da cabeça ou à frente do peito, num êxtase solene que é, no mínimo, a própria expressão da fé. Esse, contudo, também não é o clímax. Concluída a missa, ao invés de atravessar a nave na direção da praça João Mendes, a rota de saída, o público presente cruza uma porta à esquerda do altar, atravessa o pátio nos fundos da igreja e penetra o salão paroquial, onde uma mulher loira de vestido laranja organiza a fila (são mais de 150 pessoas ali), enquanto outra mulher, uma oriental, puxa as ave-marias e os pai-nossos. “Vamos rezando, gente!”, diz a de laranja enquanto endireita a fila. O coro engrossa e duas fileiras se formam, uma de frente para outra, as pessoas todas ajoelhadas como se estivessem à espera da imolação. O que aguardam, na verdade, é o padre Mário, que chega empurrado numa cadeira de rodas, distribuindo bênçãos como quem saúda uma comitiva presidencial. Nada é sutil neste homem que dizem ter expulsado inúmeros demônios: suas mãos milagrosas agarram as cabeças como se quisessem sugar o Mal que há em todos nós. São cinco, dez, não mais que trinta segundos e as pessoas vão tombando, uma a uma, como troncos recém-cortados. Quem não cai de primeira, o padre insiste, agora tocando o ombro, como se quisesse forçar a queda. Não há força física – é uma força de outra ordem, que amolece a musculatura e, de alguma estranha maneira, te impede de manter os joelhos no chão. Homens, mulheres, crianças, todos caem. Eu caí. E uma mulher ao meu lado caiu sobre mim e ficou deitada alguns minutos no chão, de olhos fechados, abraçada em posição fetal à minha mochila. A isso, chamam de “repouso no espírito”. O Diabo sempre anda à solta numa cidade como São Paulo, mas rituais de exorcismo de verdade, desses que viram filme, explica o padre Luiz Fabio Peixoto, são “raríssimos” nos dias de hoje. O que há são as chamadas missas de “cura e libertação”, uma espécie de sessão de descarrego em versão católica que tem se propagado por toda a cidade, inclusive no Centro, inclusive a uma praça de distância da Catedral da Sé, como é o caso da São Gonçalo e da igreja Nossa Senhora da Boa Morte, onde o padre Luiz Fabio organiza uma vez por mês o que ele denomina “Noite de Bênçãos”. Embora vizinha dos dois padres, a arquidiocese jura não saber o que acontece lá dentro: o Vicariato Episcopal da Comunicação levou duas semanas para me dizer que “não tem conhecimento dessa prática” e Dom Eduardo Vieira dos Santos, bispo auxiliar a cargo da Sé, limitou-se a dizer que “isso é extraoficial, né?”. Explica-se, portanto, porque tanto o padre Luiz Fabio quanto o padre Mário façam suas mandingas no salão paroquial, fora da nave da igreja. Não que seja uma prática herege, como se fosse uma importação do passe espírita ou uma versão cristã do reiki; a imposição de mãos como forma de cura espiritual está documentada na Bíblia e foi amplamente utilizada nos primeiros séculos do cristianismo, junto com outras aptidões espirituais reunidas sob o nome de Carismas, ou Dons do Espírito Santo. São Paulo, em sua Carta aos Coríntios, lista sete, entre eles o talento para a cura, a operação de milagres, o dom da profecia e a capacidade de falar em línguas (ou “língua dos anjos”, como se diz). Todos disponíveis aos leigos, por sinal: para o catolicismo, esses são dons que Deus distribui aos fiéis como forma de atuar na Terra em favor da Igreja. Algo como um exército espiritual, cada soldado com sua especialidade; às vezes mais de uma. Muitos desses combatentes ajudam diretamente os padres em seu esforço de enfrentamento do Mal (como os “intercessores” do padre Luiz Fabio, na Boa Morte). Alguns comandam seu próprio pelotão, conduzindo rituais de cura pela cidade com tudo a que têm direito – exceto a batina –, incluindo o uso do livrinho exorcista do padre Mário (à venda nas livrarias, aliás). Cinira Bueno é uma dessas: seguidora do sacerdote desde os anos 80, frequentadora das missas de quarta quase todas as semanas, hoje lidera seu próprio grupo de oração em uma igreja dos Jardins, onde ora em línguas, impõe as mãos, comenta o Evangelho e realiza suas próprias curas em nome do Espírito Santo – quase tudo o que os padres da São Gonçalo e da Boa Morte também fazem. “São orações espontâneas, inspiradas nas palavras de Deus”, ela diz, reforçando o caráter meio free style dessas práticas e, em certa medida, ajudando a explicar por que a arquidiocese tem restrição em aceitá-las. O fato é que, a despeito da atmosfera um tanto ilícita em que esses dons são cultivados, eles têm se tornado imensamente populares, capazes de lotar igrejas semanalmente com fiéis em busca dos chamados “padres exorcistas”. Exorcismo não é o que eles fazem, já sabemos, porque em tese não há possessão diabólica – condição seriíssima que passa por longo diagnóstico espiritual antes de ser reconhecida como tal –, mas isso não impede que ali se opere o que o padre Luiz Fabio define como “cura da contaminação do Mal”. Cinira concorda: “As pessoas não estão possuídas, estão contaminadas, pois frequentam o domínio de Satanás. Coisas como umbanda, candomblé, cartomante, ioga…”. Ninguém soube me dizer se alguém de fato se curou dos efeitos diabólicos dos ássanas, mas há, sim, relatos de curas de doenças reais – como o caso de uma moça surda que passou a ouvir durante um descarrego desses, libertando-se do aparelho auditivo em plena missa. Tudo isso tem um nome: Renovação Carismática, o movimento católico que congrega padres cantores, cânticos em êxtase, sessões de cura e libertação e outras práticas que, não fossem os santos no altar, fariam uma igreja parecer um templo pentecostal. Essa é uma das razões pelas quais as instâncias oficiais da Igreja Católica não são muito simpáticas a esses fenômenos de cura – mais distantes do Vaticano, mais próximos da Universal. Existe também o temor de que essas formas de exorcismo light se tornem uma espécie de Rivotril espiritual, ao qual os fiéis possam recorrer de maneira indiscriminada, não raro alegando estarem possuídas pelo maligno. “A cultura do medo cria muita confusão. As pessoas hoje têm mais medo do demônio que amor a Deus”, diz o padre Luiz Fabio. Daí a publicação, em 2017, do subsídio doutrinal Exorcismos: Reflexões Teológicas e Orientações Pastorais, um manual de recomendações produzido pela Confederação Nacional dos Bispos do Brasil para controlar a “difusão de fés estranhas à fé cristã”. No documento, propõe-se que cada diocese tenha seu exorcista oficial – uma forma de admitir essa tendência, mas cuidando para que se mantenha restrita ao âmbito oficial. Enquanto não aparece um exorcista na Sé, as igrejas vizinhas vão se tornando, a cada missa, centros de erradicação do Mal cada vez mais populares. Pode-se, inclusive, fazer duas sessões de descarrego no mesmo dia: de manhã na igreja de São Gonçalo, com o padre Mário; à noite na igreja da Boa Morte, onde toda segunda quarta-feira do mês tem a Noite de Bênçãos. Boa Morte não parece um bom nome para um momento de elevação espiritual, mas há razões históricas para isso: a igreja foi construída em 1810 pela Irmandade da Nossa Senhora da Boa Morte, uma das mais antigas de São Paulo, assim nomeada em função do culto à assunção da Virgem Maria – uma devoção apócrifa, não citada na Bíblia, segundo a qual a mãe de Jesus teria ascendido aos céus como seu filho, tendo portanto uma “boa morte”. Pelo que se conta, era também uma boa morte o que os escravos condenados ao enforcamento pediam à Virgem quando paravam na igreja para fazer sua última oração – dali, subiriam a Tabatinguera rumo ao largo da Forca, hoje praça da Liberdade, para o cumprimento da pena. E não deixa de ser uma espécie de morte também o que os fiéis buscam uma vez por mês no ritual do padre Luiz Fabio: a morte das angústias, das aflições, das sementes do Mal que habitam em todos nós. Uma morte igualmente boa, destinada ao renascimento – ainda que efêmero. Na igreja da Boa Morte não tem missa nem potes de farinha de berinjela, mas tem cantoria. Trinta minutos seguidos de cânticos de louvor e exaltação a Deus executados com ânimo de crooner espiritual por Ricardo e seu pianista acompanhador. O público canta, ergue as mãos, dança, bate palmas, fala em línguas – tudo com o intuito de invocar o Espírito Santo e seu poder de cura. Este já está presente, no fundo do altar, na forma de um ostensório que, na igreja da Boa Morte, permanece exposto por 24 horas, para “adoração perpétua”. A seus pés, ajoelha-se, para orar, um grupo de pessoas de túnica azul – são os intercessores. Aí, sim, a fila. Como na São Gonçalo, os fiéis são conduzidos por uma das portas laterais da nave. Atravessam o pátio, entram num beco e deságuam no salão paroquial, onde os intercessores, em duplas, os aguardam com uma cadeira vazia. Ali, cada pessoa se sentará, falará de suas aflições e receberá a primeira dose de carismas espirituais: imposição de mãos, orações de libertação, rezas em línguas. O padre Luiz Fabio só se revelará depois, do outro lado da igreja, na capela de Nossa Senhora Menina, acompanhado de algum diácono. Ali, à meia-luz, de pé e de aspersório na mão, os dois homens esperam os fiéis para a cura final como se estivessem nos convidando a participar de algum rito secreto (e talvez estejam mesmo). Já há duas pessoas deitadas no chão, repousando no espírito, quando chego à capela. E outras duas de pé, recebendo as bênçãos dos padres, que logo cairão também. Munido do papelzinho que os intercessores me deram, onde consta a prescrição do remédio espiritual que me será dado ali, me ponho diante do diácono Maicon, que, com a mão no meu ombro, dita palavras de conforto e estímulo. Atrás de mim há dois intercessores, falando em línguas. Depois o diácono começa a orar em línguas também – uma melopeia entorpecente, a três vozes, que vai aos poucos dissolvendo a razão e amolecendo a carne. E, então, o sopro redentor: a mão do diácono pousa sobre a minha cabeça e, de sua boca, uma aragem espessa me bate no rosto como se fosse o próprio hálito de Deus. Um sopro e eu só não tombo porque os dois intercessores me acodem e me deitam no chão. E ali fico. Nem se resistisse de pé, conseguiria: meu corpo (ou será meu espírito?) quer o chão. Não desmaiei: estou consciente. Mas a vontade é de ficar ali para sempre, prostrado sobre o ladrilho hidráulico, repousando no espírito. O chão é frio e é gostoso. Tão gostoso que me pego rindo. Um riso besta, à toa, que começa com o esgarçar dos músculos faciais e descamba para uma vontade bizarra de gargalhar. Levanto mais por vergonha que por vontade: queria mesmo era ficar ali, com as costas frias, rindo histericamente. Os padres iriam entender, mas não cairia bem ao silêncio solene daquele momento. Minutos depois da lufada divina, lembro de atravessar a nave ainda sorrindo, ouvindo a voz de Ricardo, o crooner de Deus – uma gargalhada involuntária que vinha sem aviso, e que durou até as catracas da Sé. Subi no trem pensando que, se essa é a boa morte que me prometeram, quero morrer assim todos os dias. |