Xavier Bartaburu
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SACRACIDADE
A busca do sagrado no centro de São Paulo. Textos e fotos de Xavier Bartaburu. Fotos aqui. 

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O hálito de Deus

Quarta não é dia de ir à missa, muito menos às 9 da manhã. Mas a igreja está cheia. Do primeiro ao último banco, vieram todos ver o padre Mário. É a única vez na semana em que ele vem a público, e correm rumores de que não deve tardar a se aposentar. Trata-se, afinal, de um homem de 91 anos que já tem a coluna torta e a boca quase sem dentes – no entanto, ainda capaz de rezar uma missa inteira com as pernas eretas e a voz firme de quem já deve ter arrancado incontáveis demônios do corpo de homens e mulheres. Mário Hisatugo não é, nem nunca foi, o exorcista oficial da arquidiocese, mas relatos apócrifos de rituais de despossessão diabólica conduzidas por ele lhe concederam essa fama. E é por isso que a igreja de São Gonçalo está cheia. A missa é o de menos.

Tanto é que muita gente chega com a missa em curso, alguns com a cerimônia perto do fim, lá pelo pai-nosso. O fim não é um fim: no lugar do ide-em-paz, os assistentes do padre distribuem entre o público uma folha amarfanhada, levemente borrada, onde consta a “Oração para Cura Interior”. Em coro, todos de posse da folha, os fiéis declaram: “Renuncio a Satanás, aos espíritos malignos e a todas as suas obras”. Em seguida, o padre Mário saca um caderninho com capa de plástico e lombada em espiral. É a deixa: quase que ao mesmo tempo, os fiéis tiram de suas bolsas e mochilas terços, crucifixos, roupas, pacotes de sal grosso, fotos de parentes (em papel, tablet ou celular) e garrafas pet de 500 ml ou 1 litro preenchidas com água mineral à espera de se tornar água benta. Há também um boné vermelho, alguns passaportes e um pote de farinha de berinjela (não pude saber se o que havia dentro era mesmo farinha de berinjela). Quem chegou cedo teve a chance de depositar os objetos na balaustrada diante do altar, na esperança de que as irradiações de cura do padre Mário chegassem com mais força, como uma cusparada divina.

O caderninho é uma versão resumida, xerocada pelo padre, do Ritual de Exorcismo e Outras Súplicas, publicado originalmente em 1614, durante o papado de Paulo 5º – conhecido particularmente por perseguir Galileu Galilei e sua teoria de que a Terra girava em torno do Sol –, e depois revisado em 1998, sob ordem de João Paulo 2º. O livro compila orações, ladainhas e instruções explícitas de como expulsar o maligno do corpo de um cristão, incluindo “fórmulas imperativas” como “Nós te exorcizamos, espírito imundo, potência satânica, invasão do inimigo infernal, legião, reunião ou seita diabólica” – voltadas, no caso da missa do padre Mário, a fotos, garrafas de água mineral e potes de farinha de berinjela.

Mas este ainda não é o clímax. Na sequência, o padre Mário larga o caderninho sobre a mesa do altar, fecha os olhos, ergue as mãos e enrijece as palavras, invocando Jesus, a Virgem e outras entidades da corte celestial, com o objetivo de extirpar “malefícios, feitiços e bruxarias”. Terços, fotos, roupas, garrafas, tudo que os fiéis têm nas mãos se eleva no ar, acima da cabeça ou à frente do peito, num êxtase solene que é, no mínimo, a própria expressão da fé. Esse, contudo, também não é o clímax.

Concluída a missa, ao invés de atravessar a nave na direção da praça João Mendes, a rota de saída, o público presente cruza uma porta à esquerda do altar, atravessa o pátio nos fundos da igreja e penetra o salão paroquial, onde uma mulher loira de vestido laranja organiza a fila (são mais de 150 pessoas ali), enquanto outra mulher, uma oriental, puxa as ave-marias e os pai-nossos. “Vamos rezando, gente!”, diz a de laranja enquanto endireita a fila. O coro engrossa e duas fileiras se formam, uma de frente para outra, as pessoas todas ajoelhadas como se estivessem à espera da imolação.

O que aguardam, na verdade, é o padre Mário, que chega empurrado numa cadeira de rodas, distribuindo bênçãos como quem saúda uma comitiva presidencial. Nada é sutil neste homem que dizem ter expulsado inúmeros demônios: suas mãos milagrosas agarram as cabeças como se quisessem sugar o Mal que há em todos nós. São cinco, dez, não mais que trinta segundos e as pessoas vão tombando, uma a uma, como troncos recém-cortados. Quem não cai de primeira, o padre insiste, agora tocando o ombro, como se quisesse forçar a queda. Não há força física – é uma força de outra ordem, que amolece a musculatura e, de alguma estranha maneira, te impede de manter os joelhos no chão. Homens, mulheres, crianças, todos caem. Eu caí. E uma mulher ao meu lado caiu sobre mim e ficou deitada alguns minutos no chão, de olhos fechados, abraçada em posição fetal à minha mochila. A isso, chamam de “repouso no espírito”.

O Diabo sempre anda à solta numa cidade como São Paulo, mas rituais de exorcismo de verdade, desses que viram filme, explica o padre Luiz Fabio Peixoto, são “raríssimos” nos dias de hoje. O que há são as chamadas missas de “cura e libertação”, uma espécie de sessão de descarrego em versão católica que tem se propagado por toda a cidade, inclusive no Centro, inclusive a uma praça de distância da Catedral da Sé, como é o caso da São Gonçalo e da igreja Nossa Senhora da Boa Morte, onde o padre Luiz Fabio organiza uma vez por mês o que ele denomina “Noite de Bênçãos”. Embora vizinha dos dois padres, a arquidiocese jura não saber o que acontece lá dentro: o Vicariato Episcopal da Comunicação levou duas semanas para me dizer que “não tem conhecimento dessa prática” e Dom Eduardo Vieira dos Santos, bispo auxiliar a cargo da Sé, limitou-se a dizer que “isso é extraoficial, né?”.

Explica-se, portanto, porque tanto o padre Luiz Fabio quanto o padre Mário façam suas mandingas no salão paroquial, fora da nave da igreja. Não que seja uma prática herege, como se fosse uma importação do passe espírita ou uma versão cristã do reiki; a imposição de mãos como forma de cura espiritual está documentada na Bíblia e foi amplamente utilizada nos primeiros séculos do cristianismo, junto com outras aptidões espirituais reunidas sob o nome de Carismas, ou Dons do Espírito Santo. São Paulo, em sua Carta aos Coríntios, lista sete, entre eles o talento para a cura, a operação de milagres, o dom da profecia e a capacidade de falar em línguas (ou “língua dos anjos”, como se diz). Todos disponíveis aos leigos, por sinal: para o catolicismo, esses são dons que Deus distribui aos fiéis como forma de atuar na Terra em favor da Igreja. Algo como um exército espiritual, cada soldado com sua especialidade; às vezes mais de uma.

(continua / texto completo no livro)

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