TIETÊ: O RIO E AS MARGENS
|
Uma seta para o sertão
Imagine uma vila sem saída para o mar, suspensa no cimo de um planalto, detrás de uma serra que a aparta da costa na forma de uma grossa muralha de mata e abismos, custosa de atravessar. O próprio lugarejo também está no meio da mata, dependente de terras pouco férteis que, além de tudo, passam o verão encharcadas pelos rios transbordantes. Delas, um povo no limite da miséria, ainda tentando descobrir se é índio ou português, teima em extrair qualquer sustento. A oeste, na contramão da serra, propaga-se o interior, terra incógnita que tanto seduz quanto assombra, em cuja direção corre o maior dos rios do lugar, como “uma seta apontada para o sertão, a indicar-lhe o caminho”, na definição do poeta Cassiano Ricardo. Na São Paulo do século 16, o Tietê, mais que um rio, era um convite: nascido no pé da serra, como os paulistas, parecia convocá-los a fazer o mesmo. Correr para o oeste. Mas o Tietê, tão logo se saísse da vila de Piratininga, apresentava-se adverso, cheio de cachoeiras, corredeiras e outros rumores fluviais, que exigiriam penosos traslados de canoa por terra. Melhor era usá-lo como bússola: seguir seu vale para penetrar o sertão à cata de ouro e índios que se pudesse escravizar. Os primeiros caminhos bandeirantes foram, então, pela mata, à base de facão. Mas a direção, quem indicava, era o Tietê. Acompanhando seu curso pelas margens, os mamelucos paulistas foram os primeiros a devassar o interior do Brasil, terminando por alargar os domínios da capitania para além da divisa determinada pelo Tratado de Tordesilhas. Não que o Tietê fosse inteiramente resistente às embarcações – havia alguns trechos de remanso, e nesses os bandeirantes faziam largo uso das canoas que haviam aprendido a construir com os índios, sobretudo as grandes pirogas de tronco único conhecidas como igaras. Eram as mesmas que a incipiente população paulistana usava para se locomover entre a vila e as roças que começavam a brotar ao longo do Tietê, além das aldeias que os jesuítas foram erguendo nas vizinhanças. Antes mesmo de acabar o século 16, já havia capela e casario em Mogi das Cruzes, Itaquaquecetuba, Conceição dos Guarus (hoje Guarulhos), São Miguel, Nossa Senhora da Expectação do Ó (depois Freguesia do Ó), Carapicuíba e Santana do Parnaíba. A todas, chegava-se de canoa, partindo tanto do Porto Geral no Rio Tamanduateí, ao fim da ladeira que ainda hoje leva seu nome, quanto do pequeno porto localizado no Tietê, perto da confluência dos dois rios. Quem estivesse disposto a remar podia ir ainda mais além, descendo o Rio Jeribatiba (atual Pinheiros) até as aldeias de Nossa Senhora dos Pinheiros e de Ibirapuera (hoje o bairro de Santo Amaro). São Paulo, em sua infância, era essencialmente fluvial. Longos percursos de barco pelo Tietê só se tornaram possíveis a partir do século 17, quando bandeirantes descobriram o ponto em que o rio abandonava as cachoeiras para se tornar navegável. Ali surgiu um porto que se chamou Nossa Senhora Mãe dos Homens de Araraitaguaba, mais tarde rebatizado como Porto Feliz. E era mesmo uma felicidade, para os daquela época, poder zarpar rio abaixo, sem saltos à vista, na direção de novos territórios. O primeiro a fazê-lo foi Luis de Céspedes Xería, governador do Paraguai, então colônia espanhola, e comandante da mais antiga expedição pelo Tietê de que se tem registro. Partindo em 1628 de um ponto próximo à atual Porto Feliz, suas canoas percorreram o rio até a foz, além de parte do Rio Paraná, até a Cidade Real do Guairá, a capital paraguaia. Voltaram com o primeiro mapa do Tietê, ainda um esboço com margens mal traçadas, mas já com o primeiro registro escrito de seu nome original: Ayemby. Um século depois, a estrada líquida inaugurada por Céspedes terminou sendo uma das mais importantes para a ocupação do Brasil interior. O motor foram as minas de ouro de Cuiabá, descobertas em 1718 num ponto remotíssimo da colônia, distante de tudo, inclusive de São Paulo, mas ao qual se podia chegar através do Tietê, ainda que para isso se levasse no mínimo um mês de navegação para cobrir os 3500 quilômetros que separavam os portos de partida e de chegada. O tempo era o de menos: quem embarcasse em Araraitaguaba com a promessa de uma vida de riqueza nas minas cuiabanas deveria estar disposto a correr riscos dos mais diversos. Como morrer afogado numa corredeira ou de alguma enfermidade tropical, por exemplo. Ou de uma flechada dos índios guaicurus, que atacavam montados em cavalos, ou dos paiaguás, cujas esquadras de canoas travavam verdadeiras batalhas aquáticas. Não se sabe de uma viagem dessas que tenha chegado a seu destino com todos os passageiros vivos. O Tietê tornou-se, assim, o rio das monções, como eram chamadas essas expedições fluviais para Cuiabá – nome emprestado dos ventos que levam a chuva à Índia, os mesmos que, naquele tempo, empurravam as naus portuguesas para o Oriente. Tanto lá quanto cá, o período que antecedia as monções asiáticas – princípios de abril, no caso – marcava o início da temporada de navegações. Vento, aqui, não havia, mas havia as corredeiras do Tietê. E essa era sua época de cheia, portanto um pouco menos hostil aos canoões de herança indígena que se tornaram o veículo preferido da gente monçoneira, alguns com mais de 15 metros de comprimento. Ainda assim, eram muitas as cachoeiras rio abaixo, coisa que demandava longos trechos de varação por terra, onde canoas e mantimentos deveriam ser carregados no lombo dos bois ou no ombro dos escravos. Isso quando era possível prevê-las – às vezes, era tanta a bruma sobre o rio que as quedas só se revelavam quando a proa já estava embicada no vazio. Quando não se perdia gente, ia-se no mínimo a carga. A despeito dos perigos, o Tietê valia a pena: além de encurtar a viagem, uma monção era bem mais barata que uma tropa de mulas. Com apenas uma canoa, gastava-se o equivalente a quatro animais para transportar um volume carregado por quarenta – algo em torno de 300 arrobas, ou 4 toneladas e meia. E isto era importante, pois entre Araraitaguaba e a foz do Tietê não havia uma só roça, vila ou aldeia em que se pudesse reabastecer os barcos. Pescava-se e caçava-se, é claro, mas imagine alimentar uma monção como a de 1726, composta por três mil pessoas distribuídas em cerca de 300 canoas. Daí a base da dieta dos monçoneiros: feijão, toucinho e farinha de milho – combinação que depois ficou conhecida como virado à paulista. Para matar a sede, jacuba: farinha de mandioca dissolvida em água e adoçada com rapadura. Entrado o século 19, a porção oeste do Brasil era já terra conquistada, ainda que as monções praticamente não tivessem semeado cidades em seu caminho. Quando o ouro em Cuiabá acabou, o Tietê voltou a ser um rio virgem, frequentado apenas por um ou outro viajante pertinaz, tomado pelo delírio desbravador dos velhos bandeirantes. O último deles foi o barão alemão Georg Heinrich von Langsdorff, organizador de uma expedição naturalista que partiu de Araraitaguaba em 1826, alcançou Cuiabá e continuou, Amazônia adentro, até Belém do Pará. A viagem encerraria, em tom trágico, a era das monções. No Rio Guaporé, um dos pintores, Aimé-Adrian Taunay, morreu afogado. E o próprio barão, infectado pela malária, voltou para casa tomado por uma amnésia da qual jamais se curaria. |