TIETÊ: O RIO E AS MARGENS
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Como adestrar um rio
É bem possível que a primeira visão dos jesuítas daquela que viria a ser a vila de São Paulo de Piratininga fosse a de um lago – um pequeno mar de água doce que se propagava sobre os campos até quase encostar no pé dos morros. Era janeiro, afinal, estação das chuvas, e os rios daqui tinham o costume de encher até fazer sumir o leito original. Às vezes era tanta a água que os dois maiores caudais, o Tietê e o Tamanduateí, seu afluente, se misturavam, criando uma extensa massa líquida que, naquele tempo, não deixava de configurar certa vantagem, pois transformava a colina sobre a qual se fundaria a vila numa espécie de península, fortim improvisado pela força da natureza que garantiria a segurança dos moradores para o caso de um ataque. A cidade e seus rios permaneceriam três séculos sem brigar entre si. Acomodados sobre as colinas, os paulistanos respeitavam os limites impostos pelas inundações periódicas de seus rios, enquanto estes, com seus meandros preservados, livres da intervenção humana, engordavam e afinavam seu leito conforme ordenasse a vontade das chuvas. Quem mais enchia era sempre o Tietê, confluência de todos os outros, rio gordo, porém raso, cuja profundidade mal superava os 3 metros – em certos trechos, navegava-se fincando varejões na areia do fundo. Quando chovia demais, conta-se que suas águas chegavam a subir até 5 metros acima da superfície. Para isso existiam as várzeas: áreas inundáveis onde a água tinha espaço de sobra para extravasar. Assim foi até meados o século 19, quando o progresso decorrente do café se pôs a reivindicar as áreas da cidade ainda não ocupadas. E o melhor espaço disponível, na época, eram exatamente essas várzeas, as margens dos rios sujeitas às cheias. A partir daqule momento, São Paulo começou a crescer justo onde não podia, nem que para isso fosse necessário aterrar as várzeas, tapar os rios e retificar os leitos. Dos principais, o Tamanduateí foi o primeiro: em 1848, perdeu as sete curvas que fazia ao fim da Ladeira Porto Geral para dar lugar a um canal que permitiria aumentar a vazão de suas águas, livrando as margens das enchentes e ainda aumentando a área disponível para loteamento e venda. As inundações de fato estavam se tornando um problema, sobretudo nos bairros operários que cresciam perto da confluência do Tietê com o Tamanduateí, como Mooca, Brás, Bom Retiro e Pari. Para piorar, os dejetos das fábricas e dos esgotos domésticos se misturavam às águas paradas das enchentes, favorecendo a proliferação de microorganismos transmissores de doenças como tifo, hepatite e leptospirose. Começava, aí, a briga da cidade com o rio. Dali em diante, todos os esforços das autoridades foram no sentido de tornar os rios paulistanos obedientes aos anseios da metrópole. A estratégia era, essencialmente, ganhar terreno nas várzeas para acomodar fábricas e pessoas e, ao mesmo tempo, reeducar o fluxo dos rios para que a cidade pudesse crescer sem a ameaça das enchentes. De quebra, se aproveitaria sua vazão para gerar eletricidade. Nada disso combinava com meandros: para que São Paulo crescesse, era preciso corrigir o leito dos rios, retificando-os, canalizando-os, aprofundando sua calha e, caso fosse necessário, enterrando-os por baixo de ruas e avenidas. Em 1916, o Tamanduateí já estava convertido num canal de concreto em quase toda sua extensão. Quanto ao Tietê, desde 1883 elaboravam-se projetos visando sua retificação, o que de fato começou a acontecer em 1893, com a criação de dois pequenos canais na altura de Osasco e da Casa Verde. Obras maiores, porém, levariam ainda algumas décadas para serem realizadas, e não faltaram projetos nesse sentido. Aquele que é tido pelos especialistas como o melhor deles data de 1925, assinado pelo engenheiro sanitarista Saturnino de Brito, na época à frente da Comissão de Melhoramentos do Tietê, criada pela prefeitura com o objetivo de encontrar uma solução definitiva para a coexistência entre o rio e a cidade. A ideia de Saturnino não descartava o avanço da metrópole – ele falava em “domar o rio”, como se referindo a um inimigo –, mas, de todas as propostas, era a que melhor equilibrava a ânsia de progresso com a sobrevivência do Tietê. Ele idealizou uma combinação de obras que permitisse, ao mesmo tempo, o abastecimento de água potável, o controle de enchentes e a navegação. Evitar a retificação, contudo, não seria possível: na visão da época, os 46 quilômetros de curvas entre a Penha e Osasco eram um sério entrave ao crescimento da cidade. O projeto de Saturnino previa reduzir essa distância para 26 quilômetros, mas sem abrir mão das áreas de várzea nas laterais, que seriam transformadas num parque linear, destinado a receber a água das cheias. Para ajudar a conter as inundações, o engenheiro imaginou também dois lagos entre Santana e o Bom Retiro, separados por uma ilha, além da construção de represas a montante de São Paulo, rio acima, reservadas para o abastecimento e o controle da vazão. Mas a cidade tinha outros planos para o Tietê. O primeiro teve início logo no ano seguinte, 1926, pela mão da Light, e culminaria com a reversão do Rio Pinheiros e o desvio das águas do Tietê para a Serra do Mar, onde seriam aproveitadas para a geração de energia elétrica. Depois veio o Plano de Avenidas do prefeito Prestes Maia, iniciado em 1938, célebre por inaugurar a lógica rodoviarista que até hoje governa os deslocamentos pela cidade de São Paulo. A tão adiada retificação do Tietê finalmente foi posta em prática, mas, em oposição ao que previu Saturnino de Brito, já não mais flanqueada pelas várzeas. Estas seriam substituídas por avenidas marginais correndo ao longo do leito, conectadas por uma sequência de vinte pontes de concreto. Ambicioso, o plano também atingia os outros rios da cidade: enquanto o Tamanduateí ganhava a companhia da Avenida do Estado, dezenas de córregos morriam para dar lugar às chamadas avenidas de fundo de vale. Onde antes corriam riachos como o Saracura e o Itororó surgiram vias como a 9 de Julho e a 23 de Maio. Ao contrário do que se esperava, contudo, as inundações só pioraram. Os rios, claro, continuaram a encher, dado que essa era sua natureza, porém agora sem várzeas nem vales por onde a água excedente poderia extravasar. Além disso, os rios agora enchiam mais depressa, pois não apenas as obras de canalização haviam estreitado seu leito como também este se encontrava parcialmente preenchido pelo volume descomunal de dejetos que a cidade se pôs a lançar sobre ele. Ao mesmo tempo, as décadas de aterramento dessas várzeas tornaram impermeável o solo paulistano, de modo que a chuva, que antes penetrava a terra para alimentar o lençol freático, passou a não ver saída senão escorrer de volta para os rios, seja os que ainda fluem a céu aberto, seja os tapados pelo concreto, que transbordam por meio dos bueiros. Hoje, nos dias de temporal, a natureza vai à forra, devolvendo à cidade a água dos 4 mil quilômetros de rios e riachos que São Paulo, há mais de um século, vem insistindo em domesticar. Nos anos 1970, as obras de retificação do Tietê já estavam concluídas, bem como suas margens inteiramente ocupadas, de Osasco a Guarulhos, tanto por avenidas quanto por imóveis. Mas o rio, indômito, continuou paralisando o trânsito das marginais nas décadas seguintes, o que levou o Governo Estadual, em parceria com um banco japonês, a empreender a segunda maior obra de transformação do Tietê depois do Plano de Avenidas, que foi a ampliação de sua calha. Entre 1998 e 2005, investiu-se 1 bilhão de reais na remoção de 10 milhões de metros cúbicos de sedimentos – algo como 3 mil piscinas olímpicas cheias de areia, pedras e lixo –, convertendo o Tietê num rio inteiramente diferente do que era em sua origem: mais reto, mais largo, mais profundo, mais obediente. No lugar das margens, taludes de concreto. E, entre eles, uma água fluindo com um volume 60% maior nos trechos mais críticos. Mas o Tietê, além de indócil, é também um rio exigente: cobra caro pelas modificações que lhe foram impostas ao longo dos séculos. Não basta ampliar a calha: combater as enchentes pressupõe, ainda, investimentos permanentes em obras acessórias, como a construção de piscinões para abrigar a água da chuva e a implantação de pôlderes, sistema de diques desenvolvido na Holanda que ajuda a manter certos trechos nas margens a salvo das enchentes. Além disso, há o trabalho contínuo de desassoreamento do leito, realizado desde 2011, dia e noite, por meio de barcaças, caminhões e escavadeiras. Uma vez controladas as inundações, depois de um século de intervenções desastradas no leito do Tietê, o foco se voltou novamente para as margens. O que fazer com elas, agora livres das cheias? De início fizeram mais avenidas – em 2010, a Marginal Tietê ganhou três novas faixas –, mas novas vozes também se alçaram em defesa da recuperação, até onde isso é possível, do projeto original de Saturnino de Brito, ou seja, tornar as várzeas um misto de área de lazer e reserva de enchentes. Em 2013, a prefeitura de São Paulo apresentou uma série de propostas para o que chamou de Arco Tietê, uma área do tamanho da ilha de Manhattan, em Nova York, destinada a ser objeto de transformações urbanas pelos próximos 30 anos. As ideias vão da construção de marginais subterrâneas à criação de um parque que conecte as duas margens por meio de passarelas e ciclovias. Ou seja, formas de reaproximar rio e cidade, sem que nenhum dos dois saia perdendo. Pode ser o início da reconciliação. |