TIETÊ: O RIO E AS MARGENS
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Um rio caprichoso
Tivesse nascido um pouco mais ao sul, certamente morreria anônimo numa praia de Bertioga. E nem se chamaria Tietê, que é “água grande” em tupi. Poderia também ter cavado um caminho entre os jequitibás, buscando o mar pela via mais curta, pelo caminho mais fácil. Mas grandes rios tendem a ser caprichosos desde o nascimento, e o Tietê, avesso ao banal, preferiu investigar o interior. Conjurado com a gravidade, irmã das cachoeiras, escorregou pelos contrafortes ocidentais da Serra do Mar, na direção oposta à do Atlântico, rumo aos campos que, antes das cidades, forravam o planalto. Ao escolher o oeste, o Tietê conquistou fama. Mas também perdeu a vida. Chamava-se Pedra Rajada o sítio de Salesópolis que, em 1953, recebeu a visita de uma comissão da Sociedade Geográfica Brasileira, decidida a identificar o lugar exato onde o Tietê deixava de ser lençol freático para se tornar rio. Já não havia mais mata ali: no lugar, crescera um pasto onde os bois largavam seus dejetos, que invariavelmente iam parar nas águas recém-nascidas do maior rio paulista. E assim ficou por mais quatro décadas, até que, em 1993, o governo do estado declarasse aberto o Parque Nascentes do Tietê. A mata em volta cresceu, os bois sumiram e os três olhos d´agua através dos quais o rio brota de dentro da terra, a 1027 metros de altitude, tornaram-se, novamente, translúcidos e potáveis. Com direito a peixes, os guarus. Bons para fazer farofa, dizem. Distante apenas 22 quilômetros do mar, o Tietê segue, então, no sentido inverso, o do poente, resvalando pelas encostas até topar com seu primeiro desnível, não muito longe da nascente. É a Cachoeira dos Freires, transformada em 1913 numa das primeiras hidrelétricas de São Paulo, hoje um misto de museu e usina. Mal o rio nasce, tratam logo de domesticá-lo. Chegam mesmo a alargar seu leito, pouco depois de vencida a cachoeira: é a represa de Ponte Nova, a primeira de muitas no Tietê, construída na década de 70 para abastecer de água a Grande São Paulo e controlar a vazão nos dias de enchente. Mas ele segue, voltando a ser rio, riscando curvas como uma criança em pleno exercício da liberdade. Com peixes, mas já quase sem mata nas beiras: daqui em diante, serão pastos e eucaliptos – uns para o gado, os outros destinados a virar papel nas fábricas de Suzano. Biritiba-Mirim é a primeira cidade, mas o Tietê não a vê. Está longe das margens. Ele apenas a sente, na forma dos primeiros dejetos que chegam ao seu leito. Não são muitos ainda – aqui o rio é limpo, inclusive próprio para banho. Serve fartamente, inclusive, à rega de hortaliças, principal fonte econômica da região das cabeceiras. A morte, porém, não tarda em chegar. Primeiro por obra das próprias lavouras, que devolvem a água que usaram carregada de fertilizantes, depois pelo esgoto das casas e das indústrias de Mogi das Cruzes, a cidade seguinte. Ali, o rio já praticamente não respira. Desprovido de oxigênio, o leito agora se vê preenchido por um caldo escuro e espesso que não pode ser chamado de água. Por cima dele, boiam coisas como garrafas e sofás. Uma placa avisa: “Aqui morre o Tietê”. Apenas 60 quilômetros depois de ter nascido. Antes da chegada dos portugueses, este era o ponto em que o Tietê começava adentrar os campos de Piratininga, um amplo vale flanqueado, ao norte, pelos morros da Cantareira e, ao sul, pelo espigão do Caaguaçu, de onde eram distribuídas as águas que corriam para os três grandes rios da região: o Tamanduateí, o Pinheiros e o próprio Tietê. Sobre uma colina adjacente ao Caaguaçu, São Paulo nasceu. Quem vivesse ali no século 16 veria um Tietê correndo lento, em curvas, sobre um vale praticamente sem desníveis – entre as atuais Mogi e Barueri, o rio percorre 100 quilômetros com apenas 30 metros de declive. No tempo em que ainda havia meandros, suas águas, de tão vagarosas, formavam lagos imensos na estação das chuvas. Quando vinha a estiagem, sobravam as várzeas de solo úmido e pantanoso, onde os peixes que não conseguiram voltar ao leito restavam atrapados nas poças, atraindo aves como as anhumas. Que, de tão abundantes, chegaram a servir de inspiração para o primeiro nome do Tietê: Anhembi, rio das anhumas. Parte das várzeas ainda existe, inclusive com seus meandros preservados, transformada numa Área de Proteção Ambiental que se estende de Mogi até o Parque Ecológico do Tietê, na Zona Leste de São Paulo. Mas o rio em si já está morto, arruinado pela mesma cidade que lhe deve a vida. Não podemos esquecer que foi do Tietê que veio o primeiro barro que ajudou a construir São Paulo, da mesma forma como suas águas moveram as primeiras turbinas que iluminaram a metrópole. Em seu leito os paulistanos nadaram e remaram, para depois substituí-lo por avenidas marginais que terminaram de matá-lo. Destituído de sua fluvialidade, o Tietê, ao cruzar a maior cidade do Hemisfério Sul, tornou-se um corpo d´água obediente, limitado pelas margens fabricadas por uma sociedade voraz e a serviço de seus anseios de progresso. Mas grandes rios, além de caprichosos, também são entidades obstinadas. E o Tietê, embora ainda distante da foz, tão logo abandona a metrópole se lança a um longo processo de autolimpeza. Passando Barueri, multiplicam-se as pedras no leito, as margens se estreitam e as águas voltam a correr como se fossem novamente juvenis. Na altura de Pirapora do Bom Jesus, com as quedas, o rio começa a se reoxigenar, nem que para isso tenha que transformar em espuma as toneladas de xampu e detergente que contaminam seu leito. Dali em diante, o Tietê fluirá por vários quilômetros dentro de um desfiladeiro, cavando seu caminho entre o mar de morros e espelhando a mata que voltou a crescer nas margens. O único vestígio de humanidade – fora a poluição, que ainda resiste – é a chamada Estrada dos Romeiros, a primeira pavimentada do país, que acompanha o rio respeitando seu trajeto. Quando por fim encontra a primeira cidade fora dos limites da Grande São Paulo, o Tietê já está limpo novamente. Cheio de peixes, inclusive. Salto é uma das poucas cidades tieteanas voltadas de fato para o rio, enquanto a maioria lhe deu as costas. É também a maior entre as que estão efetivamente às margens do Tietê fora da Grande São Paulo, o que não significa muito – coisa de pouco mais de 100 mil habitantes. A partir daqui, aliás, e por muitos quilômetros, não só serão pequenas as cidades como também poucas. No Médio Tietê, apenas três: Porto Feliz, Tietê e Anhembi. Fato curioso, dado que este trecho do rio foi o grande vetor de desenvolvimento do estado entre os séculos 18 e 20, justamente porque era aqui, a partir de Porto Feliz, que o rio se tornava navegável. Hoje é onde começa a Hidrovia Tietê-Paraná, a grande highway fluvial por onde trafegam grandes volumes da soja, da cana e do milho do Centro-Sul, acomodados em barcaças que atravessam uma paisagem já completamente tomada por lavouras. A partir de Barra Bonita, o Tietê deixa oficialmente de ser rio para se tornar lago. Ou melhor, uma sequência de lagos, seis no total, nos quais o leito foi transformado em represas que ajudam a iluminar as casas de uma grande parcela da população paulista. Já não há mais grandes cidades nas margens, nem mata. Apenas pastos e canaviais, quilômetros deles, em torno dos muitos braços que cada represa foi criando enquanto alagava as concavidades de um planalto suave, quase enfadonho de tão plano. As cidades ficaram distantes, à beira das estradas. No rio engordado pelas barragens, de águas lisas que refletem o céu, restaram os peixes e as barcaças. E, eventualmente, os banhistas de uma alguma improvável praia interiorana. Justo quando o Tietê deixa de ser rio é que recupera sua vocação fluvial. As águas ainda estão sujas, mas já não cheiram nem matam. Parece até que o Tietê perdoou os homens, permitindo que eles agora nadem e naveguem em seu leito. Quando o rio por fim se entrega ao Paraná, 1136 quilômetros depois de ter nascido, a única cidade a testemunhar o encontro é a pequena Itapura, antigo posto militar do tempo da Guerra do Paraguai que hoje repousa anônima à beira do Tietê, ao fim de uma estrada onde quase não passa ninguém. No trecho final não há barragens, nem barcaças, nem poluição: deixaram que o rio morresse de causas naturais, misturando suas águas às do Paraná para, então, seguir o caminho que lhe foi determinado. Será uma viagem longa, que incluirá ainda a confluência com o rios Paraguai e da Prata. Somente ao cabo de 4 mil quilômetros, contados a partir da foz, é que as águas do Tietê encontrarão o mar. |