VIAGEM À BAHIA DE JORGE AMADO
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Pipoca dos céus
“Eu sou uma pessoa aberta. Acredito até em extraterrestre”. Sentada diante de um chão forrado de pipocas, aos pés do Santuário de São Lázaro, em Salvador, a mãe de santo Virgínia Chu trata de explicar que, em matéria de fé, tudo na Bahia é possível. Sobretudo aqui, nesta igrejinha caiada do bairro da Federação, uma das mais antigas da capital, onde o sincretismo parece ter virado a norma. Toda segunda-feira, Mãe Virgínia – que, além de tudo, é devota de Nosso Senhor do Bonfim – vem de seu terreiro na Ilha de Itaparica e aqui passa o dia, quase colada à escadaria, aguardando os fiéis que saem da missa à procura de um banho curativo sob a benção de Omolu. “O pessoal sai pingando água benta e já vem direto pra pipoca”. Omolu, no candomblé, é o orixá ligado às doenças – é quem as causa e quem as a cura. No Brasil, acabou sincretizado com São Lázaro, o santo católico dos leprosos. Por extensão, aqui no santuário também se cultua São Roque, o santo protetor contra as pestes; e, por associação, também Obaluaiê, seu correspondente iorubá e, ao mesmo tempo, Omolu em sua versão mais velha. No meio dessa mistura toda, existe ainda a pipoca – invenção dos índios, aliás – que entrou na história em solo brasileiro, transformando-se na comida preferida de Omolu e Obaluaiê, item obrigatório nas oferendas e, para muitos baianos, dona de misteriosos poderes terapêuticos. Banho de pipoca, para quem crê, serve para limpar o corpo das más energias, em particular o mau-olhado, e, como diz Jaciara Carvalho, uma moça que acabou de tomar um banho pós-missa, “aliviar a tensão”. “A gente não pode lutar contra os fatores culturais e históricos”, diz Aloisio Mota, o jovem vigário da igreja, lembrando que desde o início a devoção neste lugar está conectada à população negra de Salvador. O santuário, ele conta, surgiu no século 18 como parte de um leprosário onde as pessoas, na maioria escravos, eram enviadas para se tratar de doenças contagiosas. Aqui São Lázaro ganhou fama de milagreiro e virou objeto de ardente devoção popular, sobretudo quando é segunda-feira, dia do santo. “A gente teve que colocar quatro missas às segundas para atender à demanda”. Mas só a missa das seis é especial, e é sempre a mais lotada. Faz alguns anos, o padre resolveu assumir a vocação da paróquia para o sincretismo e instituiu uma missa de forte sotaque afrobrasileiro, com direito a atabaques no altar, cânticos acompanhados pelo ritmo do ijexá e rezas em iorubá. E, manobra ousadíssima, ainda botou as mães de santo que dão banhos de pipoca do lado de fora para dançar dentro da igreja. “É uma ideia, digamos assim, progressista”, diz o vigário. “Mas foi uma maneira que encontramos de aproximar as pessoas. Não queremos que ninguém seja discriminado”. E é pontualmente às seis que Vera de Ogum e Edna de Oxum abandonam seus postos aos pés da escadaria e, tão logo ouvem os atabaques, entram dançando pela porta da igreja meio que como se estivessem no terreiro. O vigário vem logo atrás, para orgulho de Mãe Vera: “Eu sou de Ogum. Abro caminho até pro padre”. As duas entram em cena mais duas vezes durante a missa: na hora do Ofertório, quando giram no presbitério carregando cestos de pães, e no momento do Glória, quando fazem chover pétalas brancas sobre um público predominantemente mulato, sobre os coroinhas, os atabaques, o cantor, o padre, todo o mundo. Na saída da missa, de balde na mão, um coroinha despeja água benta nos fiéis com um pincel enorme. E, tal como previu Mãe Virgínia, ainda gotejando muitos vão lá tomar seu banho de pipoca. Mãe Vera e Mãe Edna já estão ali, agora no papel que melhor sabem desempenhar, derramando a chuva de pipoca sobre a cabeça de homens, mulheres e crianças. As pessoas fecham os olhos, abrem os braços, entregam o corpo ainda molhado com a benção de Deus à graça de Omolu. E saem andando, parece que felizes. “Somos tudo irmão das mesmas águas”, diz Mãe Vera, com sabedoria de ialorixá. |