VIAGEM À BAHIA DE JORGE AMADO
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Na lança, o coração
É noite de domingo e o terreiro do Opô Aganju está que é um mar de branco. Diante da Casa das Águas Sagradas, construção de paredes de palha atrás do barracão, o povo aguarda em silêncio. De dentro da casa, Pai Balbino sai carregando um feixe de atoris, hastes de madeira que identificam Oxalá, e só então Dadá de Oxum arranca a cantiga da garganta, fazendo repicar atabaques e agogôs. A audiência responde com voz e palmas e sai pela roça, uma onda de carnes negras e roupas brancas varrendo o areal, detendo-se diante da casa de cada santo para saudá-lo. Depois, numa enxurrada só, a procissão invade o barracão, inundando de alvura o salão já todo decorado de branco. Branco é a cor de Oxalá, e este é o último dos 16 dias da festa dedicada a ele, celebrada como um pedido de desculpas pelos anos em que, segundo a lenda, esteve preso por engano no reino de Xangô. Vaidoso como todo bom filho de Xangô, mas inteiro vestido de branco em honra a Oxalá, Pai Balbino tem qualquer coisa de majestade tribal. Carregado de pulseiras, anéis e colares, ele circula pelo barracão com imperturbável autoridade. A cada aceno de sua mão, os atabaques param ou recomeçam. E cada recomeço é um toque diferente, para que, um a um, os santos tomem de assalto o corpo de seus filhos. O povo todo canta junto, rindo, bem alto, reclamando a presença dos orixás. E, quando eles finalmente se manifestam, o êxtase é total. Pai Balbino, inalterável, parece que rege uma orquestra celestial. Balbino Daniel de Paula desde menino já exercia o dom da autoridade: nas brincadeiras em que a criançada fingia estar num terreiro, lá na Ilha de Itaparica, era ele quem ficava com o papel de pai de santo. Ali candomblé era assunto da mais alta seriedade, pois foi onde a família de Balbino instalou casa respeitadíssima de culto aos eguns, tradição cheia de mistérios em que os espíritos dos ancestrais vêm visitar os vivos. Ali também Xangô se manifestou pela primeira vez no futuro babalorixá, mas a iniciação mesmo seria em Salvador, no Opô Afonjá, pelas mãos da lendária Mãe Senhora. Aos 18 anos, Balbino descobriu-se filho de Aganju, uma das qualidades do orixá do fogo, muito rara nas pessoas, e logo a mais severa de todas, “a que carrega o coração na ponta da lança, e não dentro” – como ele próprio esclarece. Em 1970, Pai Balbino fez brotar num areal em Lauro de Freitas, ao norte de Salvador, o Ilê Axé Opô Aganju, enfim terreiro próprio para um babalorixá cujo respeito só crescia. Um dos grandes incentivadores foi o fotógrafo Pierre Verger, que virou amigo e mestre, inclusive levando Balbino para conhecer a África. No Aganju Verger foi obá – ministro de Xangô – e, quando morreu, ganhou memorial em sua homenagem. Às vezes ele vem visitar Balbino na forma de egum. Grandes amizades o pai de santo fez muitas, até virar uma espécie de unanimidade na Bahia, de tal prestígio que teve a honra de comandar os rituais fúnebres de Mãe Menininha do Gantois ao mesmo tempo em que estreitava a relação com padres católicos, chegando inclusive a iniciá-los no candomblé. “Eu falo por mim: eu não sei o que é preconceito. Aqui sempre vem amigo crente ou amigo católico me visitar. A gente joga dominó”. Duas horas depois de começada a festa de Oxalá, Pai Balbino já não está. Deixou o barracão a cargo de Dadá de Oxum, a moça responsável pelas cantigas de invocação. E é ela quem desata o canto que faz entrar no barracão uma nova procissão, agora uma fila de negros em transe liderados por Oxalufã, cada qual com as vestes de seu orixá. Vêm também todos de branco, mas é um branco brilhante, de gala, cheio de detalhes em prata e azul-celeste, que são as cores de Oxaguiã. Esta festa é para ele, Oxalá em sua versão menino, e sua dança será um dos pontos altos da segunda parte da festa, na qual os orixás farão cada um seu balé, atendendo ao chamado dos atabaques e da garganta de Dadá. A noite vai longe, e a esta altura Pai Balbino já deve estar até dormindo. |