PAISAGENS GASTRONÔMICAS
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JOÃO, O LOUCO
Certa feita, um japonês apareceu na fazenda do João Louco, lá em Mococa, à procura de trabalho. Chegara por meio de um programa de voluntariado, desses em que você passa uma temporada no campo aprendendo a capinar, criar porcos, ordenhar vacas e outras coisas que na cidade não se veem. O que o japonês não sabia era que a fazenda em questão era a Santo Antônio da Água Limpa, de propriedade de João Pereira Lima Neto, mestre da agroecologia de grande fama em todo o estado, célebre por ressignificar a relação do homem com o campo com base na mais autêntica sabedoria matuta. João Neto virou João Louco (aos olhos dos vizinhos, e com razão) quando, nos anos 1990, decidiu dar por encerrado o meio século de monocultura empreendido pelas três gerações anteriores para confiar a roça aos cuidados da natureza. Depois de décadas devotado aos agrotóxicos, João viu o solo gasto, as fontes contaminadas e os funcionários com a pele chamuscada pela pulverização de químicos – mais de cem empregados haviam ido parar no hospital de Mococa padecendo de queimaduras. Da noite para o dia, botou abaixo as lavouras de cana e café e em seu lugar espalhou sementes de tudo quanto fosse planta. As pequenas, o vento se encarregaria de dispersar. As graúdas, mais saborosas, seriam da alçada de vacas, galinhas e porcos, que delas se alimentariam para depois semeá-las, via cocô, onde bem desejassem. “Percebi que eu não sabia plantar árvore”, conta João. “Quem sabia era a natureza.” Em poucos anos, bichos e brisas fizeram brotar na Santo Antônio da Água Limpa uma floresta de mamoeiros, amoreiras, goiabeiras, juçaras, abóboras, taiobas, jatobás e jaracatiás, para citar só alguns dos quase cem produtos que surgiram onde antes havia apenas dois: cana e café. A terra recobrou sua fertilidade, as nascentes voltaram a jorrar água pura e os pássaros não tardaram a chegar: num rápido inventário feito em 2013 foram registradas 88 espécies em um raio de 1 quilômetro. O que era fazenda virou floresta, porém produtiva. E até os porcos, no início incumbidos apenas de disseminar as sementes, terminaram por se tornar eles próprios o item mais valioso da propriedade. O que começou com só três fêmeas e dois machos em 2010 transformou-se num rebanho de cerca de 1,6 mil suínos ao cabo de dez anos, todos caipiras, não castrados e criados à solta – à moda antiga, forrageando comida conforme o gosto e a fome, o que no final resulta numa carne com rico sabor de caça, não por acaso adotada pela Casa do Porco, templo máximo da gastronomia suína na capital. Mas e o japonês? Pois bem, esse calhou de se tornar mestre do mestre. Com o visitante oriental João descobriu o kossô – e fez dele sua mais nova obsessão. Trata-se de enzimas resultantes da fermentação de vegetais, comumente usadas como remédio digestivo no Japão, mas no qual João enxergou um improvável potencial gastronômico. Num pequeno galpão nos fundos da sede, pôs-se a fermentar em açúcar tudo quanto fosse espécie do reino vegetal encontrada na fazenda: manga, jabuticaba, café, tomate-cereja, gengibre-concha, pinha-do-brejo. No total, 140 ingredientes foram armazenados em baldes de cor branca, onde micro-organismos se encarregam de convertê-los em sabores inesperados, licorosos ou avinagrados, prontos para serem usados pelos chefs em molhos, temperos e refrescos (e já estão sendo). Orgulho maior de João, hoje, é fazer as visitas provarem cada uma das variedades de kossô que repousam em seu laboratório de fermentação improvisado – uma degustação às cegas até para ele mesmo, dado que as enzimas estão em contínua evolução. Quem passar pela fazenda nos próximos meses, porém, saiba que pode já não mais encontrar os baldes lá, mas no meio da selva: “Quero ver o que acontece quando as enzimas estão ao ar livre, interagindo com os microrganismos da floresta”. Mais uma vez, como é de praxe nas terras de João, o Louco, quem manda é a mata. |