DO GRÃO AO PÃO
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O primeiro celeiro
Data de 1614 o primeiro projeto de moinho de trigo autorizado pela Câmara de São Paulo. O local: riacho Mubuquisaba, afluente do rio Jeribatiba (hoje rio Pinheiros), perto de onde floresceria, décadas mais tarde, o bairro de Santo Amaro. Não sabemos se o moinho foi de fato construído, mas sabemos que, dois anos depois, a mesma câmara autorizou a implantação de três moinhos de trigo nas águas do Vale do Anhangabaú, a poucos metros de onde hoje se eleva a Catedral da Sé. Estes, sim, existiram, conforme atestam mapas da época, assim como o moinho erguido por Amador Bueno, membro de célebre família bandeirante, no atual bairro do Mandaqui, que acabou se tornando um dos mais produtivos daquela improvável vila tritícola. São Paulo de Piratininga contava menos de 2 mil almas quando se tornou o primeiro celeiro do Brasil. Um século depois das primeiras tentativas de plantio em São Vicente, o trigo finalmente vicejara serra acima, nos ares temperados do planalto, em torno da antiga aldeia jesuíta. Eram lavouras grandes, onde trabalhavam mais de cem escravos indígenas, capazes de produzir cerca de 150 mil alqueires de grãos por ano, ou 4 mil toneladas. Pelo tamanho, evidentemente, as fazendas não se localizavam na vila, mas nos arredores, particularmente em Santana de Parnaíba, que se tornou o maior centro de produção de cereal no Brasil Colônia. Santos e Rio de Janeiro eram os principais destinos, onde o trigo se transformava, basicamente, em hóstias e alguns poucos pães. Uma das maiores fazendas era a Santo Antônio, instalada pelo bandeirante Fernão Paes de Barros na localidade de Araçariguama, hoje São Roque. Tanto era o trigo que se produzia ali que chegou a exportar 500 sacas anuais para Portugal. Fato que, por si só, já justificaria a existência de moinho próprio, ao contrário da maior parte das fazendas paulistas, que vendiam o trigo aos moageiros da vila. Mas havia também a questão do acesso: na São Paulo do século 17, a única via de saída eram as picadas abertas pelos índios através da Serra do Mar, tão íngremes que nem as mulas encaravam. Transportar as sacas de farinha até o porto de Santos pressupunha, portanto, carregá-las no ombro de escravos. Somente um fazendeiro rico como Fernão Paes de Barros podia arcar com esse custo – o resto das fazendas tinha de vender os grãos aos moinhos, que então se ocupava de moê-los e distribuí-los nos destinos finais. A casa-grande e a capela da Santo Antônio, datadas de 1680, continuam de pé, e constituem as mais antigas construções em taipa de pilão remanescentes no estado. As mós também estão lá, contando 90 centímetros de diâmetro – prova de que não era pouco o trigo que se moía na São Paulo seiscentista. O ciclo atravessou todo o século, e certamente foi a mais importante atividade agroindustrial daquele tempo no planalto paulista, à frente da pecuária, do cultivo de algodão e da produção de aguardente. Mas não tardaria em ceder lugar a um negócio bem mais rentável, que já naquela época começava a fazer de São Paulo um grande centro produtor não de alimento, mas de gente. No caso, homens mamelucos especializados na exploração dos sertões à cata de ouro e índios – os bandeirantes. |